Aquaman, o homem entre dois mundos, híbrido de atlante e humano, foi criado por Paul Norris e Mort Weisinger e fez sua estreia na revista de antologia More Fun Comics, em 1941. De herói secundário em seus primeiros anos a um papel de maior destaque nos anos posteriores, o Rei dos Mares tornou-se realmente um personagem do primeiro escalão da DC Comics apenas nos anos 1960, quando esteve entre os membros fundadores da Liga da Justiça da América.

Nas duas décadas seguintes, o ostracismo criativo foi o seu destino: enquanto todos os outros principais personagens da editora (Superman, Batman, Flash, Mulher-Maravilha e Lanterna Verde) eram guiados pelos melhores artistas e escritores da casa, recebendo grandes histórias e protagonizando as principais sagas, Aquaman era relegado a segundo plano – até mesmo quando adaptado em outras mídias –, invariavelmente servindo como alívio cômico e fonte de ridicularização.

Os anos 1990 trouxeram novos ares para o Rei de Atlântida. A abordagem empreendida por Peter David reformulou a sua persona e o seu entorno, investindo na ampliação da mitologia do reino de Atlântida e no realce do poderio óbvio de um personagem que tem plenos poderes sobre 70% do planeta Terra – muito mais do que somente nadar com extrema aptidão, sobreviver debaixo d´água e se comunicar com animais marinhos.

O salto definitivo para a principal mídia capaz de conquistar novos fãs demoraria um pouco mais – outras duas décadas. E não poderia haver momento melhor do que a era em que o cinema de entretenimento é dominado pelos filmes de super-heróis e a tecnologia para criar o impossível está mais do que consolidada.

Oriundo do terror e responsável por um punhado dos grandes sucessos do gênero dos anos 2000 pra cá, James Wan talvez fosse a escolha menos óbvia para dirigir Aquaman – assim como Sam Raimi para o Homem-Aranha quase vinte anos atrás. Mas por fim revelou-se muito acertada.

Sua experiência prévia em um blockbuster de ação o credenciou para um filme que se baseia quase que inteiramente nisso – ação puxando ação, movendo ação – e seu talento visual soube, ao lado de outros profissionais, erguer um mundo de encantamento que parece fluir das páginas de quadrinhos diretamente para as telas do cinema.

Da paixão proibida entre um faroleiro (Temuera Morrison) e uma rainha de Atlântida (Nicole Kidman) fugida de um casamento arranjado, nasce o super-herói com nome de herói das lendas: Arthur Curry. Tal qual o rei bretão, também destinado a ser protagonista das narrativas de maravilhamento, Arthur é predito como aquele que será a ponte entre dois povos, o responsável por unir dois mundos (a terra e o mar). Atlanna some da vida de pai e filho para salvá-los da perseguição do seu povo. O pai jamais deixa de esperar o seu retorno, caminhando todas as manhãs no píer do farol. Arthur convence-se de sua morte.

Baseado em uma história de Geoff Johns, James Wan e Will Beall, o roteiro (do próprio Beall em parceria com David Leslie Johnson-McGoldrick) é o elemento mais fraco de Aquaman. Excessivamente expositivo, faz questão de narrar tudo que ocorrerá durante o longa-metragem em uma simples contação de história de Atlanna para um pequeno Arthur. Como se não bastasse, repete o mesmo recurso inúmeras outras vezes. Exagera sobremaneira em empurrar a narrativa adiante com explosões súbitas que sempre interrompem conversas importantes.

Tanto quanto é simplório de um modo ruim, o enredo é inchado em demasia. São dois vilões com histórias e motivações próprias – o Arraia Negra (Yahya Abdul-Mateen II) busca vingança pelo pai que foi deixado pra morrer pelo Aquaman –, sete reinos sendo acossados por Orm (Patrick Wilson) e obrigados a tomar decisões de união ou guerra, o romance entre os pais de Aquaman, o destino de Atlanna, o tridente lendário, os flashbacks da infância e juventude do herói e a poluição global. Fica a nítida sensação de que se o filme tivesse uns trinta minutos – e dois plots – a menos, o ritmo fluiria muito melhor e o roteiro não precisaria apelar tanto para conveniências narrativas.

Os protagonistas Jason Momoa e Amber Heard são escolhas herdadas à força por James Wan. Se tivesse sido o responsável pela escolha do elenco desde o início, é pouco provável que escolhesse a dupla. A completa inabilidade que os dois possuem em expressar emoções gera risos involuntários e constrangimento – a sequência do reencontro com Atlanna no reino do Fosso é o melhor exemplo disso. O evidente romance que ocorrerá é insinuado em planos detalhes – como as mãos que instintivamente se buscam na sequência do Saara.

Momoa ao menos sabe usar o seu físico e o seu carisma para suplantar os poucos momentos em que precisaria demonstrar algo a mais no campo da interpretação. Wan invariavelmente fecha o ator em planos que destacam o seu tamanho e os seus sorrisos, e a personalidade que foi estabelecida pelo roteiro (marrenta, boba, um tanto quanto criançona) garante a conexão imediata do personagem com o público.

O ator mais talentoso do elenco (Willem Dafoe) tem relativo espaço como o conselheiro Vulko, dividido entre seus deveres para com o Rei Orm e sua ligação emocional com Arthur, a quem treinou desde a infância, mas entrega uma atuação extremamente apagada, robótica, muito distante da sua capacidade. Nicole Kidman tem pouco tempo em cena, mas confere superioridade e nobreza ao papel que desempenha com uma atuação segura – permitindo-se até mesmo protagonizar uma ótima cena de luta no primeiro ato.

Quem realmente brilha intensamente é Patrick Wilson, como um vilão de muitas nuances, capaz de transitar entre a ardilosidade e a compaixão – convencendo em ambas – e motivado por ódios cristalinos: contra a poluição mais e mais crescente da superfície que assassina o seu povo pouco a pouco, pela suposta traição de sua mãe e pelo ódio contra o irmão mestiço. O Orm de Wilson é intenso em sua raiva beligerante, cínico em suas tramoias e altivo em sua arrogância.

A direção de James Wan é segura e competente, destacando-se nas cenas de ação, apostando em um jogo de câmeras sinuoso, sempre rodeando os personagens, girando sobre o eixo da câmera, subindo e descendo, se aproximando, como na batalha entre Aquaman e Orm no “Coliseu” subaquático. Na enorme guerra do terceiro ato, mistura quadrinhos e videogame, com “naves” e montarias de tubarões e crustáceos, água convertida em plasma colorido, com a câmera acompanhando a destruição em focos, enquanto zilhões de coisas ocorrem ao fundo, em uma enorme “confusão” coordenada.

O design de produção Bill Brzeski constrói muitos reinos submarinos e criaturas diversas, muito embora o ritmo do longa-metragem não permita que se aprofunde na cultura e nos costumes: tudo é sempre mostrado ao fundo, em segundo plano, como um belo papel de parede. Os ótimos figurinos de Kym Barrett – os uniformes do Aquaman e do Arraia Negra estão entre as coisas mais “quadrinescas” já feitas em filmes do gênero – e os excelentes efeitos visuais supervisionados por Kelvin McIlwain completam o deslumbrante visual de Aquaman, o mais solar dos filmes do UEDC, apesar de ambientado no fundo do mar na maior parte do tempo.

Em meio a tanto CGI, a fotografia de Don Burgess acaba produzindo uma das mais belas sequências de Aquaman justamente quando desnuda-se do excesso e filma ao natural, capturando a costa da Sicília na melhor e mais inventiva sequência de ação do filme. Burgess e Wan constroem um fantástico plano-sequência que acompanha Mera e os vilões que a perseguem enquanto todos correm por cima de vários telhados e arrebentam inúmeras paredes. Por fim, um traveling leva-nos até Aquaman e sua batalha pessoal contra o Arraia Negra.

No desenrolar da tensa sequência em alto-mar contra as criaturas do Reino do Fosso, quando o diretor faz seu flerte único (e rápido) com o terror, está também o mais belo quadro do longa-metragem: em um corte frontal, Arthur e Mera mergulham e a luz vermelha dos sinalizadores que carregam ilumina o negrume do mar à noite; enquanto o plano se expande, nos damos conta das dezenas, centenas, milhares de monstros que se avolumam, tentando persegui-los, impedidos de atacá-los pela forte luminosidade.

Aquaman é um filme simples e objetivo. A ação faz a narrativa girar, encadeando eventos com rapidez e eficiência. Tudo é muito esplendoroso: uma Atlântida reluzente, vastas paisagens habitadas por criaturas estranhas, vestimentas de todos os tipos, muita cor e muito frescor. O Rei dos Mares finalmente recupera o grau de relevância que possuía nos quadrinhos dos primeiros anos da DC Comics e que foi perdendo ao longo das décadas. Sua nova ascensão deve-se à precisa condução de James Wan, que compõe uma fantasia aventureira que acerta em cheio no elemento mais essencial para um filme de super-herói: diversão.

Aquaman (Aquaman) – EUA, 2018, cor, 143 minutos.
Direção: James Wan. Roteiro: David Leslie Johnson e Will Beall. Música: Rupert Gregson-Williams. Cinematografia: Don Burgess. Edição: Kirk M. Morri. Elenco: Jason Momoa, Amber Heard, Willem Dafoe, Temuera Morrison, Dolph Lundgren, Yahya Abdul-Mateen II, Patrick Wilson, Nicole Kidman, Djimon Hounsou, Ludy Lin, Randall Park.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.