“Em qualquer forma artística, cria-se a ilusão para que o público veja a realidade através de seu olho especial. A câmera está sempre mentindo. Mente 24 vezes por segundo.”

Essa é a afirmação mais conhecida de Brian De Palma, proferida em um trecho do documentário Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano (1995). A câmera mente. Essa é uma tese fundamental do cinema do diretor norte-americano, que ao lado de amigos como Steven Spielberg, Martin Scorsese, George Lucas e Francis Ford Coppola foi um dos integrantes da turma da Nova Hollywood, responsável por renovar a técnica e a estética do cinema americano nos anos 1970.

Baseado na série de TV homônima de enorme sucesso exibida entre 1966 e 1973 na CBS, o filme de Missão: Impossível era um sonho de infância do ator Tom Cruise, fã confesso da criação máxima de Bruce Geller. Já um astro consagrado do cinema nos anos 1990, resolveu transformar o sonho em realidade. Ao lado de sua sócia Paula Wagner convenceu a Paramount a investir no longa-metragem e o produziu através da Cruise/Wagner Productions, empresa criada pelos dois em 1993, contratando o renomado Brian De Palma para dirigir o projeto.

O encontro entre uma história calcada na espionagem e no protagonista injustiçado – tônica de toda a franquia que surgiria a seguir e que também incorporaria ainda mais a ação como elemento fundamental de suas narrativas –, o interesse de um ator-produtor em transformar um seriado antigo em um sucesso cinematográfico, e um diretor que sempre se assumiu (e foi apontado) como um herdeiro do mestre do suspense Alfred Hitchcock não poderia resultar em algo diferente do que resultou: um sucesso estrondoso que, além de dar origem a uma franquia que vinte e dois anos depois permanece em alta, ainda influenciou o filme de espião moderno.

Não surpreende então que De Palma inocule o seu blockbuster profundamente autoral com a magia das composições visuais que brincam com as expectativas dos personagens e espectadores. O tom farsesco é evidente já na sequência inicial de Missão: Impossível quando um cenário de interrogatório revela-se uma construção falsa montada e desmontada pela equipe de Ethan Hunt (Tom Cruise) – que depois de conseguir o que desejava do criminoso torturado, tira uma máscara de silicone do rosto, revelando a sua verdadeira face.

Ao mesmo tempo que dialoga plenamente com a cinematografia moderna, com sequências de ação de tirar o fôlego, Missão: Impossível presta uma total reverência aos clássicos antigos da espionagem e da ação. O roteiro de David Koepp e Robert Towne está constantemente tentando (e conseguindo) surpreender o público (em consonância com a tese fundamental de que a câmera mente) com uma dinâmica de traições, reviravoltas e revelações que costura toda a narrativa em pequenas peças que vão sendo encaixadas uma a uma, milimetricamente, enquanto a história avança.

A IMF (Força de Missões Impossíveis) é uma agência secreta do governo americano. Um grupo de agentes que pode fazer tudo que a CIA não pode e que assume as missões mais impossíveis ao redor do planeta. Uma missão liderada por Jim Phelps (Jon Voight) em Praga, na República Checa, acaba revelando-se uma emboscada. O objetivo era recuperar a NOC List, um disquete com o registro de todos os agentes secretos da CIA trabalhando disfarçados na Europa Oriental. Mas a equipe é quase totalmente assassinada e sobrevivem apenas Ethan e Claire (Emmanuelle Bearta), esposa de Jim. Suspeito da morte dos seus amigos e acusado de ser um agente duplo, Ethan passa a ser perseguido por seus antigos comandados e reúne uma equipe de renegados para provar a sua inocência e revelar o verdadeiro traidor no seio da IMF.

Jim Phelps, o único personagem que apareceu no seriado de TV, acabou tornando-se o vilão do filme, o que foi totalmente repudiado pelo elenco original da série. Outra diferença entre a série e o filme é que o trabalho em equipe, sem um protagonista claramente proeminente, dá lugar a Ethan Hunt como o cerne narrativo e centro de todas as atenções. O imortal tema musical criado pelo argentino Lalo Schifrin foi reinterpretado por Larry Mullen Jr. e Adam Clayton, do grupo irlandês U2. Os dois mantiveram o estilo da orquestração original, modernizando-o com efeitos eletrônicos. No elenco há uma participação especial de primeira linha da lendária Vanessa Redgrave e o sempre ótimo Jon Voight arrebenta como o herói e mentor que se torna um vilão. Tom Cruise entrega uma atuação repleta de carisma e os coadjuvantes possuem divertidas participações, especialmente Jean Reno e Ving Rhames – com o personagem de Rhames vindo a se tornar o único a aparecer em todos os filmes da franquia ao lado de Cruise.

A direção de Brian De Palma é um primor. Usando muito ângulo holandês e close-ups de rostos, captura como poucos as expressões faciais dos atores e seus olhares repletos de dúvidas e desconfianças. O diálogo entre Ethan e Phelps no terceiro ato é uma aula de subjetividade. A dança contínua entre a versão que Voight conta e o que Cruise parece imaginar em sua mente brinca com o que os dois sabem um do outro. Voight terá notado que foi descoberto pelo seu pupilo? Se Cruise agora sabe da traição do seu amigo e mentor, quais serão os seus próximos passos?

Seguindo o modelo clássico de filme de espionagem estabelecido por Alfred Hitchcock em Intriga Internacional (1959), Missão: Impossível viaja pelo mundo, passando por Kiev, Praga, Langley e Londres. O apurado senso estético do cineasta norte-americano encontra uma ótima parceria na fotografia de Stephen H. Burum. A belíssima cidade de Praga, em especial, floresce em todos os aspectos, surgindo misteriosa em tons azulados e hiper-realistas nas brumas de uma noite que parece saída de um conto de Arthur Conan Doyle.

A obsessão de Brian De Palma pelo poder da imagem é plenamente resumida na sequência em que Ethan é confrontado por Krieger e em resposta faz uma série de truques de mágica usando como “carta” a NOC List, o McGuffin do filme, o objeto de desejo de todos os personagens e que faz a trama seguir adiante. Tudo para depois descobrirmos que a NOC List estava o tempo todos nas mãos de Krieger que, enganado por Ethan, termina lançando o disquete na lixeira.

Isso define com muita inteligência o ethos cinematográfico do diretor e também todo o jogo de falsidade e sutilezas que acompanhamos durante todo o filme. Conspirações, pistas falsas, armações, agentes duplos, infiltração nos lugares mais seguros do mundo, mensagens que se autodestroem em cinco segundos, alta tecnologia com variados gadgets, como o chiclete-bomba e as famosas máscaras com as quais é jogado muito do jogo de contrainformação: todos os elementos clássicos da espionagem são colocados na mesa e são muito bem usados.

Entre várias sequências emblemáticas, como o prólogo de abertura, toda a operação da IMF em Praga, a explosão do restaurante com um enorme tanque de aquário e a insana ação final, com Ethan e Phelps desafiando as leis da física em cima de um trem-bala e um helicóptero perseguindo a composição no Eurotúnel, a que mais se destaca é a que acontece no cofre de segurança máxima instalado dentro do Centro de Inteligência Americana, em Langley, na Virginia.

Essa icônica e inesquecível sequência se transformou na marca da franquia Missão: Impossível e certamente ocupa a sua posição entre as cenas mais emblemáticas da história do cinema. O lugar lembra um cenário futurista. O sistema de segurança é virtualmente impenetrável: reconhecimento de voz, senha numérica, autenticação de retina, registro de entrada, sensor de temperatura, sensor de som e sensor de peso. Uma missão literalmente impossível, mas não para Ethan e sua nova equipe.

Ao lado de Claire, ele recruta dois lendários criminosos para a sua nova e transitória “equipe da IMF”: o hacker Luther Stickell (Ving Rhames) e o piloto Franz Krieger (Jean Reno). O quarteto resolve invadir o cofre pelos dutos e toda a ação coloca Cruise de cabeça para baixo por um longo tempo, em uma série de malabarismos que já indicavam a predileção do ator para loucas cenas coreografadas em situações de risco nos filmes seguintes.

Toda essa sequência torna-se ainda mais extraordinária quando lembramos que ela é conduzida por De Palma sem a utilização de trilha sonora – é curioso que uma franquia marcada por um dos temas mais reconhecíveis da história do cinema tenha a sua cena mais famosa erguida sem ela. O som diegético (que faz parte da própria narrativa, que existe na realidade dos personagens) é o que se torna presente, sendo usado para elevar a tensão aos estertores. O plano é complicado e depende de muitas variáveis. A edição de Paul Hirsch vai lançando pistas sobre todo o jogo de acontecimentos que irá culminar na execução do mirabolante roubo.

Um laxante é colocado por Claire na bebida do azarado William Donloe (Rolf Saxon), responsável pelo cofre. Só que os efeitos não ocorrem no tempo exato e Krieger precisa puxar Ethan a tempo de tirá-lo do campo de visão do analista da CIA. Centímetros de distância e tensão separam os dois, enquadrados na mesma cena, em profundidades opostas, pela câmera inclinada do diretor. Até que Donloe começa a vomitar e corre para o banheiro.

Entra em cena o rato, que surge ameaçador, ao fundo, em planos fechados do rosto de Jean Reno que ressaltam de maneira genial o terror da situação, que se eleva à medida em que o animal se aproxima perigosamente da cabeça do ator. Ele consegue matar o roedor, mas não sem impedir que a corda que sustenta Ethan corra um pouco de suas mãos e o agente termine suspenso a míseros centímetros do chão do cofre.

Eis então que surge o suor. O plano-detalhe da gota escorrendo lentamente pela borda dos óculos de Ethan. O olhar de tensão do personagem. A sua mão enluvada impedindo que ela toque o chão e ative o sensor. E a genial e hitchcockiana passagem do plano-detalhe para o plano-médio e do plano-médio para o plano-geral, em uma aula incomparável de condução do suspense e da tensão.

Por último a faca de Krieger cai em um slow motion de arrepiar, cravando-se na mesa milésimos depois que Donloe abre a porta e desativa o sistema de segurança. O analista observa o estranho objeto. Uma bandeira fincada de uma invasão bem-sucedida. Donloe olha para o alto e vê o duto de ar aberto. Compreende tudo.

Nascido no ocaso de um período no qual os filmes de ação ainda não eram feitos com cortes incessantes que impedem o espectador de compreender o que está acontecendo ou poluídos com excessos de efeitos de computação gráfica absurdos, Missão: Impossível é o elo perdido de um gênero que vinte e dois anos depois parece ter sido quase completamente entregue ao frenesi da modernidade que é incapaz de manter sua atenção concentrada em qualquer cena que dure mais que dois segundos.

Um filme de ação e espionagem que quase não tem disparos de arma de fogo e que possui longos planos em silêncio. O que Brian De Palma conseguiu aqui foi o equilíbrio perfeito entre as coisas mais impossíveis que a técnica cinematográfica moderna permite e o mais puro suspense hitchcockiano em um blockbuster de espionagem e ação, um clássico moderno do gênero.

Missão: Impossível (Mission: Impossible) – EUA, 1996, cor, 110 minutos.
Direção: Brian De Palma. Roteiro: David Koepp e Robert Towne. Música: Danny Elfman e Lalo Schifrin. Cinematografia: Stephen H. Burum. Edição: Paul Hirsch. Elenco: Tom Cruise, Jon Voight, Emmanuelle Béart, Henry Czerny, Jean Reno, Ving Rhames, Kristin Scott Thomas, Vanessa Redgrave, Emilio Estevez, Ingeborga Dapkunaite, Valentina Yakunina, Marek Vasut e Rolf Saxon.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.