“Uma criança balança as pernas ritmicamente por excesso de vida, não pela ausência dela. Pelo fato de as crianças terem uma vitalidade abundante, elas são espiritualmente impetuosas e livres; por isso querem coisas repetidas, inalteradas. Elas sempre dizem: “Vamos de novo”; e o adulto faz de novo até quase morrer de cansaço. Pois os adultos não são fortes o suficiente para exultar na monotonia.”

G. K. Chesterton, Ortodoxia.

Flórida. O cenário é um motel (hotel de beira de estrada) de baixo orçamento chamado O Castelo Mágico, com sua fachada de três andares pintada em cores vivas, como um simulacro de alegria – a poucos metros dali, a opulência da Disney World e suas atrações temáticas que habitam o imaginário de todo o tipo de criança. Quartos minúsculos que servem não apenas como estadia temporária para viajantes, mas como moradia quase permanente para uma miríade de pessoas que não têm condições de pagar aluguel. Nesse lugar vivem a irresponsável Halley (Bria Vinaite) e sua filha de seis anos, a espevitada Moonee (Brooklynn Prince). É verão e Moone não para um instante sequer, correndo para lá e para cá com seus amigos Scooty (Christopher Rivera) e Jancey (Valeria Cotto); brincando, pulando, azucrinando, aprontando travessuras inimagináveis com vizinhos e turistas; explorando os arredores do lugar como se vivesse uma aventura eterna.

É sob a perspectiva infantil de Moonee e seus amigos, às sombras do mundo de fantasia dos parques temáticos de Orlando, que acompanharemos o profundo e delicado drama que é Projeto Flórida. Inteiramente rodado em locação, com o motel em pleno funcionamento durante as gravações – moradores e funcionários de verdade são vistos durante o filme e todas as áreas externas também são reais –, o filme transpira a crueza do mundo real. No elenco encabeçado pelo experiente Willem Dafoe, pessoas que nunca haviam feito um filme na vida: Prince respondeu ao anúncio de um teste, várias das crianças foram escolhidas nas ruas; a tatuadíssima Bria Vinaite, intérprete da desbocada mãe de Moonee, foi descoberta pelo diretor Sean Baker no Instagram.

As cores saturadas do universo multicolor que circunda aquelas pessoas inunda a tela na fotografia de Alexis Zabe: sorveterias, lanchonetes, lojinhas, hipermercados, outdoors, sinalizações… sob a sombra do império de sonhos do Mickey Mouse aquele universo pobre se permite fantasiar e tentar entrar em sintonia com a magia através de suas fachadas e pinturas vulgares. Em muitos momentos, a direção de Baker se apresenta como a de um documentarista: câmera na mão, rodeando os atores, gerando imagens instáveis, sem trilha, que evidenciam quão imprevisíveis podem ser os amanhãs daquelas pessoas – ao lado de diálogos espontâneos e realistas, essas sequências conferem um potente grau de verossimilhança a Projeto Flórida. Ao mesmo tempo, o diretor brilha em enquadramentos sofisticados, elaborados ou improvisados, como quando captura Dafoe fumando à noite no segundo andar do motel. Já a belíssima sequência final foi feita “clandestinamente” na Disney World com um iPhone 6S Plus.

Dafoe interpreta Bobby, o gerente do motel. A delicadeza da atuação fenomenal do experiente ator confere uma grandeza ímpar ao papel. Bobby é um homem de paciência infinita, por mais que muitas vezes se irrite, o que é plenamente justificável: mergulhado em um trabalho exaustivo, preso até o pescoço em toda sorte de afazeres, lidando com todo tipo de clientes e problemas (de uma idosa que faz topless na piscina a traficantes que tentam vender drogas hospedados em um dos quartos), no desempenho diário de muito mais funções do que o seu cargo exige (pintando paredes, consertando maquinários estragados), é notável perceber o modo como ainda encontra tempo para se acercar com afetuosidade dos dramas humanos que ocorrem com aquelas pessoas que vivem no motel.

Com o seu jeito discreto, Bobby percebe tudo que acontece ao seu redor, repreendendo aqueles que erram, mas essencialmente cuidando dos outros – mesmo que estes não percebam ou não deem valor a isso. Sobre mãe e filha, derrama um olhar generoso e carregado de compaixão e condescendência, protegendo as duas sempre que possível, mesmo com as explosões constantes da intempestiva Halley, que tantas vezes elege o pacato gerente como alvo (“Você não é o meu pai!“), e com as infinitas traquinagens que as crianças aprontam, como entrar na sala de energia e desligar a luz do motel inteiro, brincar de esconde-esconde na sala de monitoramento – com Bobby dentro dela! –, ou provocativamente lamber sorvetes na recepção que acabou de ser inteiramente limpa. Pai de Jack (Caleb Landry Jones), que o auxilia em vários serviços gerais, Bobby projeta em mãe e filha muito da sua experiência paterna, sempre pronto a aconselhar e zelar.

Esse instinto de cuidado aflora fortemente na proteção das crianças em uma sequência magistral que evidencia toda a sutileza da construção do roteiro de Sean Baker e Chris Bergoch, quando um homem idoso desconhecido (Carl Bradfield) aproxima-se dos pequenos que brincam na área de piquenique. Do alto de uma escada, Bobby chega a derrubar o balde de tinta quando vê o que se materializa óbvio ante seus olhos. Indo imediatamente na direção do homem, conduz a situação na base da conversa, levando o suspeito com calma para uma outra parte mais vazia do motel, até finalmente fazê-lo sair correndo do lugar, sob gritos para que nunca mais retorne. Nada precisa ser verbalizado em relação à sombra do abuso infantil que paira sobre aquelas crianças correndo por aí sozinhas sem a supervisão dos seus negligentes familiares. É a sensibilidade de Bobby que evita um crime em potencial. Mas Bobby poderia não estar ali. E em quantos outros lugares e situações iguais existem Bobbys atentos ao que acontece com as crianças ao redor?

As diabruras das crianças são completamente absurdas, frutos evidentes de lares desfeitos (em nenhum momento alguma criança aparece com pai e mãe em cena ao mesmo tempo) e criações completamente equivocadas, sem imposição de limites, horários, correções ou mesmo tentativas de incutir senso de responsabilidade. Todas aquelas crianças crescem livres – livres demais. Emulando em suas rotinas e relações interpessoais tudo aquilo que apreendem dos pais e adultos que os rodeiam – e que agem com uma completa falta de maturidade o tempo todo. Moonee é um perfeito reflexo em miniatura da imatura Halley, imitando seus trejeitos e atitudes. Ao lado dos seus amiguinhos, a pestinha importuna turistas pedindo dinheiro para comprar sorvetes, pratica competição de cuspe em carros alheios e põe fogo ao seu redor – metaforicamente, mas também literalmente –, vivendo, tal qual a sua mãe, como se toda a convivência social devesse se curvar aos seus caprichos e vontades.

A pequena Brooklynn Prince é um fenômeno irresistível. A sua Moonee é uma força motriz. Explosão constante de vivacidade e energia inesgotáveis. Ela cativa desde a primeira cena, mesmo com sua falta de educação assombrosa – no mesmo nível da mãe – com qualquer um que apareça pela frente, e segue a cativar durante toda a duração do filme, especialmente conforme mergulhamos no ludismo de seu universo doce de amizades e fantasias, que apesar de todo o risco e fragilidade que a rodeiam e ameaçam destruir a sua infância, permanece vivo, firme e forte, transformando tudo ao seu redor: o castigo por cuspir no carro dos outros converte-se em uma fonte de risos e diversão (e a garota em quem ela cuspiu minutos antes torna-se a sua melhor amiga, daquele modo simples de olhar pra frente e fazer amizades eternas que só é possível às crianças); dividir um sorvete entre amigos (uma lambida pra cada um) é o ápice de uma tarde ensolarada; um pasto desolado com algumas poucas vacas vira um verdadeiro safári; uma casa antiga e abandonada é um reino a ser explorado; uma chuva se transforma em motivo para dançar e festejar; o arco-íris que surge depois que tudo começa a secar é a oportunidade perfeita para buscar o ouro que existe em seu final.

Halley ama a filha, mas não tem a mínima condição de cuidar dela, sendo tão ou mais criança que a garota. Sem trabalho fixo, faz bicos pra se manter e conta com o auxílio de Ashley (Mela Murder), mãe de Scooty, uma amiga que trabalha em uma lanchonete próxima e que ajuda com o aluguel e também com comida grátis. Só que o temperamento encrenqueiro de Halley, e as coisas que Moone e as crianças aprontam, eventualmente fazem com que também Ashley se afaste de vez da amiga, e obrigue o mesmo a seu filho em relação a Moonee. Diante das dificuldades para se manter com a filha, Halley rapidamente parte da venda de perfumes falsificados em bairros ricos para o furto e a prostituição, que pratica inconsequentemente no quarto do motel, com a música alta e a filha colocada para brincar quieta em longos banhos de banheira na porta ao lado da cama.

Projeto Flórida é de uma enganadora simplicidade. Os primeiros minutos podem criar a impressão de que veremos apenas um filme sobre crianças indisciplinadas vivendo um verão qualquer em um motel barato de beira de estrada. O dia a dia daqueles personagens aos poucos vai se revelando na montagem dinâmica do próprio Sean Baker e o espectador vê-se submergindo naquele ambiente marginalizado e abandonado. A empatia com os personagens é imediata e um laço afetivo se estabelece e se aprofunda conforme a narrativa avança. Para definir todas as coisas em um encerramento poderoso (dos melhores que o cinema já viu em tempos) que, tal qual uma montanha russa de um dos parques temáticos abundantes nas proximidades daquele lugar paupérrimo, leva de um extremo ao outro em questão de segundos: da emoção triste que toca fundo ao coração ao sorriso sincero de alegria diante da fantasia que permite sonhar.

No close-up do rosto de Brooklynn Prince vemos a comprovação de que acompanhamos durante pouco mais de 100 minutos o nascimento de uma atriz extraordinária. Aos seis anos de idade, a garotinha consegue expôr toda a sua capacidade interpretativa em uma sequência de partir o coração. Quando finalmente tornam-se inevitáveis as consequências provavelmente definitivas do modo irresponsável com que Halley cria a filha, Moonee se desespera diante da iminente separação e foge para a casa de sua melhor amiga. Em pé na porta, incapaz de explicar o que aconteceu, por uma explosão de sentimentos conflitantes que embaralham seus pensamentos e por ser criança, Prince cai em um choro copioso diante da amiga, conseguindo apenas dizer adeus.

Até que a atitude repentina de Jancey muda tudo como em um passe de mágica: puxando Moonee pelo mão, as duas saem correndo, câmera de Baker por trás dos seus ombros, trilha sonora incessante, cortes secos pela cidade; os piques das duas de um motel ao outro, de uma loja a outra; pelas calçadas, nas ruas, nos campos, nos estacionamentos, até chegarem no meio da multidão, o castelo de sonhos tomando a paisagem ao fundo. Do mundo cruel dos adultos irresponsáveis para a fantasia da Disney World. A expectativa infantil de ser capaz de ser salva de uma vida que não é o que deveria ser. Depois de fazer rir e emocionar em iguais medidas, e revirar experiências, sensações e sentimentos em uma obra espetacular que tanto denuncia as mazelas sociais de pessoas que vivem à margem, invisíveis aos demais, quanto celebra a vivacidade infinita da infância, Baker reconecta sua crônica cotidiana com tudo aquilo que é tão comum a qualquer criança, em qualquer lugar de mundo: a fantasia.

Projeto Flórida (The Florida Project) – EUA, 2017, cor, 111 minutos.
Direção: Sean Baker. Roteiro: Sean Baker e Chris Bergoch. Música: Lorne Balfe. Cinematografia: Alexis Zabe. Edição: Sean Baker. Elenco: Willem Dafoe, Brooklynn Prince, Bria Vinaite, Valeria Cotto, Christopher Rivera, Caleb Landry Jones, Aiden Malik, Mela Murder.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.