“Incapaz de perceber a Sua forma, eu encontro Você ao meu redor. Sua presença enche meus olhos com o Seu amor, torna humilde meu coração, pois Você está em todos os lugares.”

Nada parece impossível no universo particular que o cineasta mexicano Guillermo del Toro construiu nas telas ao longo de duas décadas. Desde a sua estreia na direção em 1993, com o excelente terror vampírico Cronos, Del Toro tem caminhado com talento em sua cinematografia pelas pradarias da fábula, a sua forma de expressão predileta. Suas obras são habitadas por figuras antropozoomórficas e situações insólitas dignas de uma história saída da pena de Esopo. O cinema sempre investiu, de diferentes formas, em uma espécie de poder mágico que parece colocar a realidade em fuga: somos congelados no tempo e transportados para outra realidade – deturpada por uma encenação –, além do tempo. O cinema é feito de ilusão; a verdade nem sempre é convincente, o real nem sempre é crível – e a imaginação, essa faculdade ímpar do ser humano, assume as rédeas. De produções em tempos recentes, A Forma da Água surge como um dos melhores exemplos dessa irrealidade mágica tão intrínseca ao próprio cinema.

Estamos em 1962. Estados Unidos e União Soviética podem a qualquer momento deflagrar um conflito nuclear. Elisa Esposito (Sally Hawkins) é uma faxineira muda que trabalha em um laboratório secreto de pesquisas governamentais em Baltimore. Uma misteriosa criatura anfíbia (Doug Jones) capturada nas florestas na Amazônia é levada para estudos no local, permanecendo presa o tempo inteiro em um tanque de água. A curiosa Elisa aproxima-se aos poucos, estabelecendo uma comunicação íntima e não-verbal com a fantástica criatura, que é tratada como assunto de segurança nacional pelos militares. Responsável pela segurança do laboratório, o cruel Coronel Strickland (Michael Shannon) convence seu superior, o General Hoyt (Nick Searcy), de que o melhor a se fazer é executar o “monstro” e estudar o seu cadáver. Os apelos do doutor Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), responsável pelas pesquisas do laboratório e contra essa solução, são inúteis. Com o auxílio de sua inseparável colega de trabalho Zelda (Octavia Spencer) e do seu vizinho de corredor e melhor (e único) amigo Giles (Richard Jenkins), Elisa irá correr contra o tempo para salvar a criatura.

Tudo impressiona em A Forma da Água. Seguindo o mesmo apuro que caracteriza sua peculiar assinatura visual, Guillermo del Toro ergue um ambiente de fantasia e horror que parece ter vida própria, a partir da combinação perfeita entre a fotografia lúgubre do dinamarquês Dan Laustsen, de tonalidades esverdeadas e azuladas, como a transportar-nos para um universo aquático em cada composição, e o extraordinário trabalho de direção de arte dos canadenses Paul Denham Austerberry, Shane Vieau e Jeff Melvin, que torna os paupérrimos apartamentos nos quais vivem Elisa e Giles em ambientes ricos e aconchegantes, além de construir um laboratório plangente, que parece indicar a cada corredor, a cada sala, que criatura alguma um dia sairá dali viva. O universo do filme é extremamente texturizado e tangível, de uma vividez que parece saltar da tela. Del Toro busca sempre uma beleza terrificante, hiper-realista, que inquieta tanto quanto fascina.

A trilha sonora do espetacular compositor francês Alexandre Desplat (seu trabalho em Tão Forte e Tão Perto [2011], inteiramente no piano, é primoroso) é um deleite e um componente essencial de A Forma da Água. Desde as sonoridades lúdicas que acompanham o cotidiano de Elisa até os acordes tensos que ilustram os instantes de terror da obra, suas composições nostálgicas ancoram o espectador dentro da narrativa, provocando múltiplas sensações e contribuindo para a imersão. Além dos temas de Desplat, ainda há espaço para clássicas canções francesas e para Chica Chica Boom Chic, um samba-rumba de enorme sucesso gravado pela brasileira Carmem Miranda em 1941.

Richard Jenkins confere uma atuação terna ao seu Giles, ilustrador desempregado e homossexual que vive entre gatos, desenhos e musicais, e possui uma bela e verdadeira relação com Elisa. A Zelda de Octavia Spencer é o alívio cômico da narrativa, extremamente simpática e tagarela (fala por ela, por Elisa, e mais umas vinte vezes por ela própria), funcionando também como uma espécie de espectador inserido no universo fantástico do filme. O onipresente Michael Stuhlbarg é um cientista russo infiltrado no laboratório com a intenção de sequestrar a criatura, mas que acaba também se afeiçoando a ela e auxiliando Elisa em seu plano de salvação. E o antagonista é o irrefreável Strickland de Michael Shannon, em uma atuação assombrosa na caracterização de um homem odioso e repugnante, que busca apresentar uma pretensa superioridade moral que justifique o seu racismo e misoginia. Enquanto a história avança, o chefe de segurança se degrada cada vez mais (seus dedos arrancados pela criatura, reimplantados e depois gangrenados são o símbolo dessa queda), tornando-se mais e mais imprevisível, não parecendo haver limites para a sua maldade.

Feiura e a beleza caminham juntas em A Forma da Água, metamorfoseando-se, e a criatura anfíbia é o melhor exemplo disso. Interpretada por Doug Jones, colaborador habitual de Del Toro, ela evoca o famoso monstro do clássico do terror O Monstro da Lagoa Negra (1954), filme que fascina o cineasta desde que era criança, surgindo perigosa e monstruosa com seus avanços repentinos na direção do vidro inquebrável do tanque-prisão, apenas para ter toda a sua aura de monstro do horror completamente desmantelada quando Elisa se esgueira para o seu convívio, e sorri com ternura, e oferece um ovo cozido do seu lanche noturno, e coloca música para tocar em uma vitrola, e soletra uma palavra com as mãos… enfim, oferece muito amor à criatura – e recebe igual amor em troca.

Cultuado pelos povos da Amazônia como um deus, é justamente sob o aspecto divino que o fabuloso ser se revela à doce e triste Elisa (e a expressividade física de Jones faz-se visível nas repetições dos gestos ensinados e na elegância com que caminha, uma figura tão imponente quanto soturna), especialmente nas delicadas sequências eróticas entre o insólito casal, quando a pele úmida da criatura é tocada pelas mãos suaves da mulher e pedaços da sua carne convertem-se em um belíssimo azulado translúcido. A relação que emerge entre os dois é puramente sensorial.

A encantadora Sally Hawkins entrega uma performance soberba como a protagonista dessa fábula romântica. Órfã e muda desde o nascimento, a personagem é de uma intensidade única. Por mais solitária que seja a sua existência, assentada em padrões rotineiros evidenciados nas primeiras cenas do longa-metragem, Elisa permanece sonhadora. O romantismo é parte inerente da sua vida. Vivendo em cima de um cinema decadente (o que não é nem um pouco aleatório), assiste a musicais clássicos na TV em preto-branco, ao lado do seu amigo Giles e sapateia pelos corredores como se fosse uma Shirley Temple crescida.

Em uma sequência magistral, Elisa e a criatura estão à mesa; enquanto o estranho ser come seus ovos, a mulher tenta explicar-lhe o seu amor em linguagem de sinais. Del Toro suspende o tempo. Tudo ao redor escurece, a fotografia converte-se em preto e branco, o único facho de luz restante foca em Hawkins, e em seguida estamos em um palco, orquestra ao fundo, Elisa e a criatura trajados a rigor, em um esplêndido e breve número musical, que referencia a dança de Fred Astaire e Ginger Rogers em Nas Águas da Esquadra (1936). É lúdico, é delicado, é bonito. Após a primeira noite de amor entre os dois, é a gota de chuva na janela do ônibus que transfigura-se em magia, em pura fantasia, fazendo da tela um quadro surrealista.

Um monólogo poderoso entre Elisa e Giles traduz toda a ideia central de A Forma da Água. Dos gestos desesperados e doridos de Hawkins, traduzidos em sons vacilantes por um Jenkins acuado e solícito, brota um grito surdo, mas que ressona profundamente no peito. Comparando-se à criatura anfíbia (“O que sou eu? Movo minha boca, como ele. Eu não emito som, como ele. Eu sou como ele.”), Elisa derrama no seu amigo toda a extensão do amor que sente. E de como é, em sua medida, também uma rejeitada, uma pária. No romance surreal, espera agarrar-se em uma oportunidade única de viver os seus sonhos mais extraordinários.

Diante da impossibilidade que seria a criatura viver fora da água, em meio à sociedade e sob a perseguição implacável de Strickland, o roteiro apresenta o clichê e o subverte com outro clichê; oferece um clímax trágico e melancólico (à noite, nas docas, em meio à chuva forte), para em seguida soterrá-lo em um misto de esperança e quimera (nas águas turvas do mar), quando toda a magia da criatura anfíbia faz-se presente, em uma resolução que pode ou não ser ilusória, ao mesmo tempo que lança pistas sobre o passado de Elisa. No seu conto sobre homens que são, por dentro, muito mais monstruosos do que criaturas que eles julgam monstruosas por causa de suas aparências, Guillermo del Toro traça uma homenagem cativante aos filmes de monstros e aos musicais do passado, criando uma obra de contornos clássicos que celebra o amor genuíno, doce e puro, capaz de unir os desiguais com sua força transformadora, mesmo diante de todos os obstáculos.

A Forma da Água (The Shape of Water) – EUA, 2017, cor, 123 minutos.
Direção: Guillermo del Toro. Roteiro: Guillermo del Toro e Vanessa Taylor. Música: Alexandre Desplat. Cinematografia: Dan Laustsen. Edição: Sidney Wolinsky. Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins, Doug Jones, Lauren Lee Smith, Michael Stuhlbarg, Octavia Spencer, Nick Searcy e David Hewlett.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.