A expressão inglesa “comics” designa as histórias em quadrinhos produzidas nos EUA. Originalmente, essas revistinhas traziam apenas conteúdos de comédia em suas histórias, sempre fechadas e feitas para o público infantil e infanto-juvenil. Com o tempo, o humor passou a dividir os quadros das páginas com uma miríade de estilos: o terror, a ficção científica, as criaturas sobrenaturais, a ação, a aventura, o western… chegando mesmo a amalgamar-se com esses gêneros. A revolução que os anos 1960 trouxeram para os quadrinhos norte-americanos solidificou de vez nessa mídia o domínio dos super-heróis fantasiados e coloridos que haviam nascido no final dos anos 1930 e quase sido enterrados no final dos anos 1940, além de estabelecer uma atmosfera aventureira que se manteve a sua principal vertente por muito tempo.

Por mais que mestres da nona arte como Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko aproveitassem as suas criações para diluir elementos que gostavam, como psicodelia, misticismo e cientificismo, a alma dessas histórias seguia sendo a despretensiosa diversão aventureira. O poderoso Thor, o deus do trovão, criado em agosto de 1962 por Lee, Lieber e Kirby nas páginas de Journey Into Mistery #83 (clique aqui para ler a resenha), é um dos personagens da Casa das Ideias que mais viajou nessa linha de ação, tanto quando a mente inventiva de Kirby aproveitou para misturar em seu traço cinematográfico conceitos e elementos como humanidade, mitologia, ciência, magia, tecnologia avançada e as loucas teorias pseudo-científicas de Eram os Deuses Astronautas, como quando Walt Simonson inoculou um espírito de aventura cósmica pura no personagem. Eram histórias eivadas de uma fantasia excêntrica, colorida e insana, um caldeirão de ideias que até hoje influencia outros artistas das HQs. E Thor: Ragnarok compreende as substâncias dessas duas fases clássicas (a primeira no visual, a segunda no coração) como os filmes anteriores do super-herói foram incapazes de fazer.

Os dois primeiros filmes do Thor tiveram diferentes abordagens. Enquanto Kenneth Branagh tentou produzir um conto asgardiano com toques shakesperianos em Thor (2011), Alan Taylor errou a mão em um confuso Thor: O Mundo Sombrio (2013). Por mais que os dois filmes tenham feito relativo sucesso, nenhum deles alcançou o público e a crítica do mesmo modo que as demais franquias da Marvel Studios conseguiram. Para a terceira parte da trilogia, lançada no mesmo ano em que Thor comemora o 55º aniversário de sua primeira publicação (em agosto de 1962), Kevin Feige optou por uma total e completa mudança de rumo, jogando fora todas as regras desgastadas das duas obras anteriores. Uma aposta ousada (e certeira), a começar pelo diretor escolhido: Taika Waititi, um peculiar e extravagante neozelandês advindo do cenário indie, no comando do seu primeiro blockbuster (com orçamento centenas de vezes superior a de todos os filmes que havia dirigido) e dono de um humor muito característico, calcado no absurdo e sempre pronto a se auto-depreciar antes de tudo.

Depois de partir da Terra ao final de Vingadores: A Era de Ultron com o intuito de pesquisar sobre as joias do infinito, nada parece ter dado muito certo para Thor (Chris Hemsworth) – e descobrir algo sobre os poderosos artefatos é uma coisa que definitivamente ele não foi capaz de fazer. Retornando a Asgard para avisar Odin (Anthony Hopkins) sobre a iminência do Ragnarok, a destruição de tudo, o que ele encontra é um lar descuidado, entregue a peças teatrais que louvam o heroísmo de Loki (Tom Hiddleston), que está se fazendo passar pelo pai que ele exilou na Terra. Em Nova York, os dois irmãos contam com o auxílio do Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) para irem atrás de um alquebrado Odin, escondido na Noruega. Por lá, descobrem a existência de Hela (Cate Blanchett), a deusa da morte e verdadeira primogênita de Odin, banida de Asgard há muito tempo atrás. Thor acaba sem o seu martelo e preso em Sakaar, um enorme ferro-velho do universo inteiro, comandado pelo insano Grão-Mestre (Jeff Goldblum), que adora combates de gladiadores em arenas. O deus do trovão se vê obrigado a enfrentar seu antigo companheiro Hulk (Mark Ruffalo) enquanto tenta escapar do planeta e retornar a tempo de salvar o seu povo – e no meio do caminho o seu time de “vingativos” receberá as adições de Valquíria (Tessa Thompson), uma guerreira alcoólatra e sarcástica, e Korg (Taika Waititi), um hilário gladiador de pedra.

Thor: Ragnarok começa com uma excelente cena entre Thor e Surtur. O deus do trovão surge soberbo, destemido e arrogante, fazendo pouco caso do discurso do demônio de fogo e excessivamente confiante em suas habilidades e no poder do seu martelo – que Taika Waititi maneja com precisão em uma sequência de ação estonteante, com a câmera acompanhando o mjölnir em suas rotações de ataque e defesa. Seus poderes só aumentam no restante do filme (aqueles que sempre esperaram por um Thor realmente poderoso irão adorar), mas a empáfia asgardiana logo é desmascarada pelo diretor, que com seu humor nonsense aplica quilos e quilos de humanidade no personagem. A peça satírica (com hilárias participações especiais) encenada em Asgard aponta o tom farsesco que o filme assumirá dali em diante (e há uma referência incrível a uma história clássica de Walt Simonson), com o roteiro desconstruindo toda a pseudo-seriedade do deus do trovão, que gradativamente vai perdendo tudo: a pose, o cabelo, a nobreza e o martelo (facilmente destruído por Hela), sendo descartado como lixo pelo “ânus do demônio” em um planeta de gladiadores, obrigado a fazer o que não quer, até perceber que, sozinho, não poderá impedir o Ragnarok, e precisará de toda a ajuda possível de antigos e novos aliados.

O roteiro é de Eric Pearson, Craig Kyle e Christopher Yost, mas percebe-se que Taika Waititi falou a verdade quando afirmou que trabalhou com improvisação em 80% dos diálogos: a sua assinatura é visível. São diálogos longos, auto-depreciativos e irônicos e situações absurdas, tudo filmado quase sempre com uma câmera incômoda, em close e fechada em um mesmo plano por segundos extras enquanto o efeito cômico é absorvido pelo espectador. E tudo isso sem esquecer do drama – outra de suas características. A desgastada e dúbia relação familiar Thor e Loki está toda lá, explorada com mais humanidade e lembranças da infância e menos combates diretos, e o arco dos irmãos com Odin na Noruega, mesmo curto, é emocional e belo. A dinâmica entre Thor e Hulk/Bruce Banner funciona muito bem e o Gigante Esmeralda, balbuciando palavras e frases curtas no melhor estilo “Hulk esmaga!“, parece saído diretamente de sua longeva fase inicial nas HQs, reagindo como uma criança birrenta a todas as provocações de Thor e finalmente existindo como uma persona distinta de Bruce Banner – e que não deseja voltar a ser o “fracote” Bruce Banner, que, por sua vez, garante algumas das melhores sacadas do filme, especialmente as que envolvem Tony Stark e uma certa cigana.

O elenco inteiro está confortável em seus papéis, mas os destaques absolutos são Cate Blanchett e Jeff Goldblum. Hela tem pouco tempo em cena (e olhando em retrospecto, o filme nem precisava da vilã, já que o arco inteiro em Sakaar seria suficiente para um ótimo resultado final, ou mesmo um Ragnarok apenas com Surtur cumprindo a profecia), mas mostra todo o seu poder, destruindo coisas e assassinando guerreiros poderosos com extrema facilidade assim que surge em cena. Blanchett entrega uma performance deliciosa, sinuosa e sensual, visivelmente confortável no tom de farsa de Thor: Ragnarok, destilando ironia em todas as suas falas. Já Goldblum… é Goldblum. Do começo ao fim. E isso é espetacular. O experiente ator parece ter nascido para o papel do afetado Ancião do Universo, completamente insano e excêntrico, repleto de trejeitos e atuando como uma espécie de apresentador de TV e DJ obcecado pelos combates nas arenas, sempre auxiliado pela sua fiel escudeira Topázio (Rachel House).

Além deles, Tessa Thompson rouba a cena desde o primeiro instante quando surge cambaleante saindo de uma nave: forte, carismática, sarcástica… e beberrona. Os excelentes Mark Ruffalo, Anthony Hopkins e Tom Hiddleston seguem as precisões de suas atuações anteriores nos filmes do estúdio e o mediano Chris Hemsworth, rodeado de intérpretes talentosos, consegue não ficar muito atrás dos seus companheiros, com Taika Waititi extraindo excelentes momentos do ator, especialmente na comicidade e na ação – o próprio Waititi arranca risadas com sua fala de acento maori dando suavidade e graça involuntária ao gigante de pedra Korg. Poderia haver mais Idris Elba como Heimdall (que finalmente tem espaço para brilhar), e menos do Executor de Karl Urban, que está bem, só que em um personagem descartável na história, mas nada que atrapalhe o desenvolvimento narrativo.

Jack Kirby arquitetou do zero o visual de praticamente todo o universo de super-heróis da Marvel Comics durante os anos 1960 – e fez a mesmíssima coisa com o universo cósmico da DC Comics em 1971. Apesar disso, e mesmo com a overdose anual de filmes do gênero, ainda não havíamos visto com clareza total a sua peculiar assinatura artística transposta com fidelidade apurada para as grandes telas. Justamente no ano em que celebra-se o centenário do seu nascimento, Thor: Ragnarok faz isso com perfeição, capturando toda a influência kirbyana até mesmo nos aspectos mais minimalistas, entregando um dos visuais mais belos dos filmes da Marvel Studios, graças ao excepcional trabalho do designer de produção Dan Hennah, que foi o diretor de arte da trilogia O Senhor dos Anéis (2001-2003), da figurinista Mayes Rubio, da equipe de efeitos especiais (supervisionada por Jake Morrison) e do fotógrafo espanhol Javier Aguirresarobe, que desenha uma fotografia competente – o flashback da luta entre Hela e as Valquírias é belíssimo e parece germinado a partir de uma arte renascentista.

O camarote do Grão-Mestre na arena de Sakaar é puramente kirbyano: repleto de ornamentos complexos, elementos visuais distintos, linhas e mais linhas para todos os lados, que se atravessam e se encontram, com direito até mesmo a personagens vestidos com figurinos que remetem aos Celestiais. O próprio mundo sakaariano, com seu encontro de múltiplas culturas espaciais, recebe a marca do artista, com um design retrô-futurista, e por todo o filme vemos ecos do seu traço detalhista, vivo, repleto de cores (pegue qualquer página dos quadrinhos de Thor e veja que o arco-íris vai muito além da Bifrost), além dos seus clássicos maquinários muito além da nossa imaginação. Ainda se fazem presentes as famosas Kirby Kracles, imagens pretas usadas para a representação de energias cósmicas ou insondáveis.

A trilha sonora de Mark Mothersbaugh encaixa-se muito bem com todos esses aspectos e a reconhecível assinatura musical do compositor, líder do Devo, preenche Thor: Ragnarok de uma sonoridade new wave, lotada de sintetizadores surrealistas que parecem trilha de videogame – mas é Immigrant Song, do Led Zeppelin, que toma os holofotes para si, elevando ainda mais o nível das duas melhores sequências de ação do longa-metragem. Ação que Taika Waititi filma não em lotes como normalmente se espera em um filme do tipo, mas com talento, entregando alguns dos melhores combates dos filmes do universo compartilhado da Marvel. As coreografias são interessantes, assim como os posicionamentos de câmera, e elas não se perdem na confusão ou nos cortes, sendo tão incríveis quanto fantasiosas – o combate entre Thor e Hulk na arena de gladiadores é tudo o que se espera dela.

Thor: Ragnarok compreende a essência de aventura que sempre encharcou o poderoso Thor nos quadrinhos, especialmente na clássica fase de Walt Simonson, e entrega uma excêntrica e divertídissima viagem intergaláctica com contornos de fábula. Convertendo as ideias e conceitos de Planeta Hulk – com o auxílio luxuoso do Gigante Esmeralda – em um verdadeiro Planeta Thor – dois terços do filme acontecem em Sakaar –, o filme é facilmente a melhor aventura do deus do trovão nos cinemas e uma das melhores da Marvel Studios, lançando o personagem em uma jornada intensa de volta ao lar, em uma missão de salvação (“Asgard não é um lugar, é um povo.”) e autodescoberta. Dentro da estrutura fechada e coesa de um universo compartilhado, pouco afeita a experimentações, Taika Waititi produz um filme que indiscutivelmente é um blockbuster de super-herói, com seus combates imensos e explosões para todos os lados, mas que ainda assim é visível como seu filme, profundamente engraçado, com a sua marca irreverente e a sua voz – e que seria ainda melhor do que é se tivesse muito mais do estilo do neozelandês.

Thor: Ragnarok Thor: Ragnarok – EUA, 2017, cor, 130 minutos.
Direção: Taika Waititi. Roteiro: Eric Pearson, Craig Kyle e Christopher Yost. Música: Mark Mothersbaugh. Cinematografia: Javier Aguirresarobe. Edição: Joel Negron e Zene Baker. Elenco: Chris Hemsworth, Tom Hiddleston, Cate Blanchett, Idris Elba, Jeff Goldblum, Tessa Thompson, Karl Urban, Mark Ruffalo, Anthony Hopkins, Tadanobu Asano, Ray Stevenson, Zachary Levi, Rachel House, Sam Neill, Clancy Brown e Benedict Cumberbatch.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.