“Eu queria mostrar como o contato humano cria algo especial em um ambiente não tão especial”. – Taika Waititi

Taika (“Tigre” em maori) David Waititi nasceu em Raukokore, na costa leste da Nova Zelândia, filho de pai Te-Whanau-a-Apanui – uma das tribos da sociedade maori – e mãe judia de origem russa. Fotógrafo, pintor e designer de moda, envolveu-se inicialmente na indústria cinematográfica como ator, sendo aclamado pela crítica do seu país por suas habilidades de intérprete em comédias e dramas para cinema e TV. Conheceu seu amigo Jemaine Clement quando estudaram teatro na Universidade Victoria de Wellington, e juntos formaram a exitosa dupla de comédia “The Humourbeasts“. Waititi ainda percorreu o território neozelandês com shows solos de humor de enorme sucesso. Eventualmente começou a dirigir e escrever curtas, participando de concursos em sua pátria natal, até concluir seu primeiro trabalho profissional em 2003: Dois Carros, Uma Noite (Two Cars, One Night), premiado no NZ Film and TV Awards, no Festival do American Film Institute, nos Festivais Internacionais de Oberhausen e Berlim e indicado nos Festivais Internacionais de Sundance, Hamburgo e Seattle, todos em 2004, e nomeado ao Oscar de melhor curta-metragem em live-action em 2005.

O curta-metragem de 11 minutos escrito e dirigido por Taika Waititi é tão reflexivo quanto simples. O enredo: enquanto esperam por seus pais, dois meninos e uma menina se encontram no estacionamento de um pub rural da Nova Zelândia. O bar é o Te Kaha Hotel and Pub (um lugar que o próprio diretor conheceu na infância, e onde também permaneceu muito tempo do lado de fora, no carro, esperando pelos pais). Os dois meninos são os irmãos Romeo (Rangi Ngamoki) e Ed (Te Ahiwaru Ngamoki-Richards) e a menina é Polly (Hutini Waikato). Ed, o mais novo, lê um livro no carro, compenetrado; Romeo, o mais velho, inquieta-se no banco do motorista com a monotonia reinante e ruminante da espera. O carro em que Polly se encontra logo estaciona na vaga ao lado e a garota olha fixamente para o carro dos garotos. Incomodado, Romeo grita alguns insultos pela janela (“Ei, feiosa! Ei, feiosa!“). Ela o ignora, para de olhar, mas depois de um tempo devolve as provocações. A rivalidade entre os dois é evidente. O tempo passa e os três permanecem esperando. Romeo tenta assustá-la. Polly sorri e abaixa a janela do carro. Os dois conversam. Romeo se gaba e diz saber dirigir. Grita perguntas a Ed, além de provocações (“Ele é gay, eles gostam de garotos. O garoto favorito de Ed é o Johhny Deep. Ele também é gay.”) que o irmão ignora respondendo laconicamente “sim” a tudo para poder continuar absorto na leitura. O tempo torna a passar. Romeo está dentro do carro com Polly, prestando atenção em um anel de diamantes (de plástico) que a garota manuseia atentamente. Os dois conversam. Quando finalmente os pais saem do pub, chega ao fim o breve momento entre Romeo e Polly. O anel é dado a Romeo por Polly (“Para que você se lembre de mim. Mas não vamos nos casar.“). O carro parte. Os últimos sorrisos e olhares são trocados. Romeo permanece no estacionamento esperando seus pais.

Dois Carros, Uma Noite é dirigido com economia por Taika Waititi. De um espaço reduzido que compreende duas vagas de estacionamento, ele retira tudo que é necessário para a sua história, posicionando a câmera por fora das janelas dos carros, a partir de uma certa distância dos capôs e na altura dos para-brisas, fazendo até mesmo um belo traveling de um carro ao outro. Além disso, investe em closes dos expressivos rostos das três crianças, todas recrutadas na mesma escola, Te Kura Kaupapa Maaori o Maraenui, a 20 km do pub Te Kaha. Embora nunca tivessem atuado anteriormente, as crianças transpiram credibilidade em cena com suas performances, atuando com uma naturalidade impressionante – e os espirituosos diálogos infantis escritos por Waititi auxiliam na tarefa (“Romeo? Qual o nome do seu irmão? Julieta?“). O neozelandês também se permite um toque metafórico de inventividade quando faz com que tudo que ocorra fora das cenas em que as crianças participam transcorra aceleradamente: o mundo dos adultos é chato para as crianças, suas atividades e afezeres também, e enquanto tudo isso passa velozmente ao largo, sem atrair suas atenções, a infância segue o seu ritmo próprio, lento, e os minutos de provocações, conversas e brincadeiras parecem adquirir o contorno das horas. Ao mesmo tempo, as transições de sentimentos e certezas são insanas: no universo infante, uma rivalidade transforma-se em amizade íntima com a mesma velocidade com que a luz singra o cosmo – e Dois Carros, Uma Noite lança um olhar engraçado e terno sobre isso. No fim, aprendemos com Romeo e Polly que o amor pode ser encontrado nos lugares mais inesperados e triviais. E que seus instantes podem ser eternos.

“Há alguns momentos na infância que têm um impacto duradouro. Não porque mudem o curso de sua vida, ou porque como uma grande fanfarra, de fato, o contrário disso. Esses são momentos em que uma alegria inesperada é encontrada no cotidiano, um momento de beleza no ordinário, no comum. Dois Carros, Uma Noite captura um desses breves momentos.” – Taika Waititi

O curta-metragem (sem legendas em português) encontra-se disponível no YouTube e no Vimeo:

Dois Carros, Uma Noite (Two Cars, One Night) – Nova Zelândia, 2004, p&b, 11 minutos.
Direção e Roteiro: Taika Waititi. Produção: Ainsley Gardiner e Catherine Fiztgerald. Elenco: Rangi Ngamoki, Hutini Waikato, Te Ahiwaru Ngamoki-Richards, Riwai Waka e Dion Waikato.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.