É possível que pareça uma contradição – mas garanto, o aparenta ser apenas na superfície, e somente para quem não conhece a fundo a sua mitologia –, mas o pilar fundamental do universo ficcional de O Planeta dos Macacos é a humanidade dos seus personagens símios. A história literária criada por Pierre Boulle em 1963 (confira a crítica do livro) assentou suas características enquanto crítica social na singularidade de um mundo no qual os humanos permaneceram animais selvagens e os macacos evoluíram a ponto de se tornarem a espécie dominante e agirem mimeticamente como humanos – na estrutura civilizacional, na vida cotidiana, nos dilemas e nos conflitos.

Em 2005, os roteiristas Rick Jaffa e Amanda Silver desenvolveram um conceito para um novo filme da franquia, reinventando a história do chimpanzé César, protagonista de A Conquista do Planeta dos Macacos (1972) e Batalha do Planeta dos Macacos (1973) e filho do casal Dr. Cornelius e Dra. Zira, os dois macacos que auxiliam Charlton Heston no filme de 1968. A 20th Century Fox ficou impressionada com a ideia e optou por reinicializar a franquia símia. O desenvolvimento do projeto levaria cinco anos, entre idas e vindas de produção, e o novo filme só seria lançado em 2011, uma década após a fracassada tentativa anterior dirigida por Tim Burton. E o grande acerto da narrativa criada por Jaffa e Silver é justamente primar pelo humanidade do seu protagonista.

Will Rodman (James Franco) é um cientista da Gen-Sys, uma empresa de biotecnologia com sede em São Francisco. O seu pai, Charles Rodman (John Lithgow), tem Alzheimer, e Will tenta a todo custo encontrar uma cura para a doença, criando a droga viral ALZ-112. Essa terapia genética permite que o cérebro crie células para efetuar um autorreparo e apresenta enormes progressos quando testada na chimpanzé Olhos Brilhantes (referência direta ao modo como a Dra. Zira chamava Taylor no filme de 1968), que demonstra um aumento considerável de inteligência. Mas durante a apresentação da droga para investidores, Olhos Brilhantes escapa em fúria de sua gaiola e acaba morta a tiros pelos seguranças da instalação. O chefe da Gen-Sys, Steven Jacobs (David Oyelowo), encerra o projeto e sacrifica todos os outros chimpanzés usados para testes. Entretanto, Robert Franklin (Tyler Labine), assistente de Will, descobre que Olhos Brilhantes tentava apenas proteger o seu filhote recém-nascido. Will leva o bebê chimpanzé para casa e rapidamente percebe que a mutação do vírus ALZ-112 é hereditária, com as habilidades cognitivas de César crescendo a cada ano que passa. Um confronto com um vizinho acaba tirando César das mãos de Will, lançando-o na violenta clausura de um pretenso Santuário Primata, e o chimpanzé deixará a docilidade de lado para liderar uma revolta pela libertação da sua espécie e de si próprio.

César é o protagonista, o coração e a alma de Planeta dos Macacos: A Origem, e a sua veracidade só é possível por causa do excepcional trabalho de Andy Serkis e da Weta Digital, empresa de efeitos visuais neozelandesa fundada por Peter Jackson, Richard Taylor e Jamie Selkirk. O ator britânico, referência mundial na área pelos seus brilhantes trabalhos na trilogia O Senhor dos Anéis (2001-2003) e em King Kong (2005), coloca a captura de movimentos em outro patamar, transformando-a de vez na nomenclatura que recebe atualmente: captura de performance. Os movimentos de Serkis fluem com naturalidade do animalesco chimpanzé domesticado para a nobreza crescente e familiarmente humana, nascente na esteira do crescimento emocional de César, que ao partir da infância para a vida adulta vivencia descobertas e revelações e acaba sendo forjado nas vicissitudes da vida enjaulada no Santuário dos Primatas. O desprezo pela humanidade começa a ter uma semente germinada em seu coração ao mesmo tempo em que uma noção de comunidade em relação aos outros símios passa a ocupar a sua mente.

As nuances e sutilezas da atuação física de Andy Serkis são notáveis no modo de andar, nos movimentos, nos gestos e nas expressões faciais de César, que convence o espectador como um macaco inteligente – e não só ele, mas os outros símios também. O trabalho de computação gráfica comandado pelo mestre Joe Letteri merece ainda mais destaque quando observamos que Planeta dos Macacos: A Origem é um filme essencialmente diurno, de locação, com muitos cenários abertos e fartamente iluminado. Há poucas cenas escuras e em estúdio – como a jaula do Santuário de Primatas de São Bruno, onde César fica confinado, faz amizade com o benevolente orangotango de circo Maurice (interpretado por Karin Konoval e nomeado em homenagem a Maurice Evans, intérprete do Dr. Zaius no filme original) e o gorila Buck (Richard Ridings), rivaliza com Rocket (Terry Notary) e sofre nas mãos do cruel Dodge Landon (performance destacada de Tom Felton). A fotografia do excelente Andrew Lesnie preenche com suas tonalidades brancas e acinzentadas o laboratório da Gen-Sys, a casa dos Rodman, a enevoada ponte Golden Gate e o intrigante e exuberante Monumento Nacional de Muir Woods, a terra das sequóias gigantes.

A direção de Rupert Wyatt é competente, investindo em uma câmera que se movimenta constantemente para acompanhar a extrema agilidade dos macacos, e constrói uma ótima sequência de ação no terceiro ato, que tem início com a fuga dos macacos tomando as ruas de São Francisco e levando o caos ao cotidiano urbano, e termina com um clímax tenso e frenético na ponte Golden Gate, com uma composição de cena precisa, que mesmo com tantos elementos em cena (carros, helicóptero, macacos, pessoas fugindo, montarias, armas de fogo) não se torna confusa em nenhum momento. O ritmo de Planeta dos Macacos: A Origem é conduzido pela trilha sonora de Patrick Doyle, com o efeito dramático ressaltado pelas muitas trombetas aumentando e diminuindo constantemente, sons baixos e profundos, muita percussão, e temas que se encaixam sonoramente com os rugidos dos símios e seus movimentos agressivos e desordenadamente coreografados pelas ruas da cidade.

Rupert Wyatt, Rick Jaffa e Amanda Silver inserem de maneira orgânica inúmeras homenagens a O Planeta dos Macacos (1968), como nomes que referenciam personagens e atores e o cativeiro dos macacos emulando o cativeiro do humanos, com os jatos d´água nas celas, a captura com redes e os biscoitos como recompensas, além de associarem diretamente os filmes através das reportagens na TV e nos jornais que indicam a viagem espacial de Icarus, a nave de Taylor, Landon e Dodge. “Tire suas patas imundas de mim, seu macaco sujo e maldito!”, a clássica frase dita por Charlton Heston aos seus captores símios no filme de 1968, quando finalmente recobra o dom da fala, é transposta com originalidade para a boca de Tom Felton, antes que ele escute César proferir uma palavra pela primeira vez: “Não“!

Planeta dos Macacos: A Origem não é um filme perfeito – longe disso. A maioria dos personagens humanos são mal desenvolvidos, como a primatologista Caroline Aranha (Freida Pinto), e James Franco (tão protagonista quanto César) entrega uma atuação inexpressiva – as exceções ficam por conta dos personagens com menos tempo de tela, nas performances destacadas de John Litgow e Tom Felton. Há também problemas de ritmo, com uma mudança muito abrupta do segundo para o terceiro ato, mas ainda assim o que Rupert Wyatt e companhia entregam é um excelente recomeço para a franquia símia. Um entretenimento competente, com ótimas sequências de ação, efeitos visuais de primeira categoria, trilha sonora envolvente, e uma atuação sensível de Andy Serkis, capaz de transformar um personagem criado em CGI em uma criatura relacionável e que conquista a estima do espectador desde os primeiros instantes em cena. Nós entendemos sua história, seu drama, a dubiedade dos seus sentimentos em relação aos humanos e a sua revolta. Dotado de inteligência pela arrogância humana, César compartilha seu dom com os demais símios e tenciona levar seu povo para uma nova realidade, onde possam viver livres dos abusos e maus-tratos. Sem saber, a civilização acaba caminhando para a ruína nesse processo. Mas César está em casa. E a humanidade perde de vez o comando do planeta.

Planeta dos Macacos: A Origem (Rise of the Planet of the Apes) – EUA, 2011, cor, 105 minutos.
Direção: Rupert Wyatt. Roteiro: Amanda Silver e Rick Jaffa. Música: Patrick Doyle. Cinematografia: Andrew Lesnie. Efeitos Visuais: Weta Digital. Edição: Conrad Buff e Mark Goldblatt. Elenco: James Franco, Andy Serkis, Karin Konoval, Terry Notary, Devyn Dalton, Christopher Gordon, Richard Ridings, Jay Caputo, John Lithgow, Freida Pinto, Tom Felton, David Oyelowo, Brian Cox, Tyler Labine, David Hewlett e Jamie Harris.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.