John Ronald Reuel Tolkien, conhecido internacionalmente como J.R. R. Tolkien, nasceu em 3 de janeiro de 1892, em Bloemfontein, no Estado Livre de Orange, atual África do Sul. Aos três anos de idade passou a viver na Inglaterra com a mãe, Mabel Suffield, e o único irmão. O seu pai, Arthur, faleceu no ano seguinte na África, antes de poder juntar-se à família. Em 1900, a sua mãe converteu-se do anglicanismo ao catolicismo romano, e a sua família cortou todo o auxílio financeiro que lhe dava. Mabel faleceu de diabetes em 1904, e Tolkien e seu irmão foram entregues aos cuidados do padre jesuíta Francis Xavier Morgan, a quem ele descreveria mais tarde como um segundo pai.

Católico apostólico romano convicto e fiel, Tolkien apaixonou-se pela protestante Edith Bratt aos 16 anos, mas o padre Morgan proibiu qualquer relacionamento até que ele completasse a maioridade. Na noite do seu vigésimo-primeiro aniversário, Tolkien escreveu a Edith, convencendo-a a casar-se com ele; ela então converteu-se ao catolicismo, os dois noivaram, casaram e tiveram quatro filhos, permanecendo juntos até o final de suas vidas. Um ano após o seu casamento, Tolkien foi chamado para lutar na Primeira Guerra Mundial, sobrevivendo à Batalha do Somme, uma mal-sucedida incursão britânica na França e na Bélgica, e sendo profundamente influenciado pelos horrores testemunhados nas trincheiras.

Tolkien teve uma longa e ilustríssima carreira acadêmica como filólogo e professor de anglo-saxão, inglês e literatura inglesa, mas foram as suas extraordinárias obras de ficção – em especial aquelas ambientadas na fictícia Terra Média – que o tornaram conhecido mundialmente. Era amigo íntimo do irlandês C.S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia – também ele um dos grandes escritores britânicos do século XX –, com quem liderou o grupo informal de discussão literária The Inklings – as sociedades de estudo eram uma de suas paixões. Em 1972, recebeu o título de doutor honoris causa em Letras pela Universidade de Oxford e foi nomeado Comandante da Ordem do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II, uma das maiores honrarias britânicas.

Seus livros foram traduzidos para mais de 30 idiomas e estima-se que venderam mais de 250 milhões de exemplares no mundo inteiro. Mesmo tendo surgido depois de célebres escritores de fantasia e ficção, o seu trabalho atingiu um patamar único de popularidade e prestígio, influenciando uma miríade de artistas na literatura, no cinema, na música, no RPG e nas histórias em quadrinhos. Os contos de fadas, a mitologia e a fé católica constituem pilares fundamentais da sua extensa obra. O “pai da moderna literatura fantástica” faleceu em 2 de setembro de 1973, em Bournemouth, Inglaterra, aos 81 anos de idade, sendo enterrado junto com a esposa no cemitério de Wolvercote.

Além da Terra Média

Se antes de 2001 J.R. R. Tolkien era pouco difundido no Brasil – sendo um nome restrito a quem gostasse de literatura fantástica ou que, por ventura, se interessasse em conhecer a inspiração primordial para a criação de Dungeons & Dragons e a origem do RPG moderno –, a partir das adaptações cinematográficas de sua magnum opus, O Senhor dos Anéis – e mais recentemente de O Hobbit –, o nome do escritor britânico tornou-se conhecido pela imensa maioria das pessoas, mesmo aquelas que nunca leram sequer um livro seu.

Todos conhecem as suas principais obras ambientadas na Terra-Média, mas e os outros livros? Mestre Gil de Ham, Roverandom, Sobre Histórias de Fadas, A queda do Rei Arthur, Árvore e Folha, Ferreiro de Bosque Grande, As Cartas de J. R. R. Tolkien, A Lenda de Sigurd e Gúdrun, Sr. Bliss, A História de Kullervo, Cartas do Papai Noel… Todas essas obras revelam outras facetas de Tolkien, desconhecidas de muitos: o poeta, o ensaísta, o contista e o pai que criava histórias espetaculares para seus filhos dormirem ou enquanto nada podiam fazer em meio a uma tempestade.

A jornada até a publicação de Mestre Gil de Ham

A história de Mestre Gil de Ham foi contada pela primeira vez quando a família Tolkien foi apanhada por uma tempestade após um pique-nique e se abrigou debaixo de uma ponte. A primeira versão escrita da história tinha apenas 26 páginas, sendo muito curta e simples, narrada por “Papai”, que interrompia a história para perguntas e situava a narrativa em um contexto pessoal. A maior parte das brincadeiras filológicas, referências em latim e alusões eruditas da versão final estava ausente no início. Os personagens principais ainda não tinham nome, não havia um contexto histórico e a localização da aventura era vaga.

Anos depois, J.R. R. Tolkien faria uma segunda versão do manuscrito, com algumas pequenas diferenças. Quando, em 1936, George Allen & Unwin aceitaram O Hobbit para publicação, pediram a Tolkien que apresentasse outras histórias infantis de sua autoria. Ele enviou Mr. Bliss, Roverandom e Mestre Gil de Ham. Os editores avaliaram Mestre Gil de Ham entusiasticamente. Mas a história era curta demais para um livro.

Com o sucesso de O Hobbit em 1937, os editores queriam uma continuação da história. Tolkien decidiu começar a escrever O Senhor dos Anéis, mas logo percebeu que jamais conseguiria terminar aquela obra até o Natal de 1938 – e levaria ainda quase duas décadas para isso. Tolkien havia reescrito Mestre Gil de Ham, alongando-a em praticamente 50% e a propôs ao seu editor como solução. Inicialmente a obra seria chamada The Lord of Tame, Dominus de Domito: A Legend of Worminghall [O Senhor de Tame, Dominus de Domito: uma lenda de Worminghall], mas logo esse título foi eliminado, e Tolkien voltou a Mestre Gil de Ham. Durante a revisão ele ainda acrescentou vários nomes próprios, brincadeiras e alusões que dão uma graça a mais ao livro.

Durante os anos da Grande Guerra o livro ficou em stand by – enquanto a produção de O Senhor dos Anéis avançava lentamente. Em 1946, o livro foi lido pela editora e teve sua história considerada “deliciosa”, mas ainda era muito curto. Por fim, como as obrigações acadêmicas de Tolkien impediam-no de ampliar a história ou mesmo escrever outras, Allen & Unwin decidiram publicar Mestre Gil de Ham isoladamente.

Tolkien revisou o último original datilografado e fez uma grande quantidade de alterações, acrescentando-lhe, também, um prefácio cômico, no qual finge ser editor e tradutor de um texto antigo – mesma coisa que faria anos mais tarde em O Senhor dos Anéis –, e apresenta-o como se fosse mais ou menos verdadeiro. Meses depois, Pauline Baynes produziu as artes do livro. Em 1949, o livro foi finalmente publicado.

A seguir, o prefácio cômico-satírico de Mestre Gil de Ham:

Restam poucos fragmentos da história do Pequeno Reino, mas por acaso um relato de sua origem foi preservado; talvez mais uma lenda que um relato, pois evidentemente se trata de uma compilação tardia, cheia de fatos assombrosos, derivada não de crônicas confiáveis, mas das baladas populares às quais seu autor faz frequentes referências. Para ele, os acontecimentos que registra já estavam num passado remoto; não obstante, ele próprio parece ter vivido no território do Pequeno Reino. Todo conhecimento geográfico que revela (o que não é seu ponto forte) é daquela região, ao passo que de outras regiões, ao norte ou a oeste, não conhece nada.

Um motivo para apresentar uma tradução desse interessante relato, passando-o do seu latim insular para o idioma moderno do Reino Unido, pode ser a visão de época que ele nos proporciona, num período obscuro da história da Grã-Bretanha, sem mencionar a luz que lança sobre a origem de alguns topônimos difíceis. Há quem considere o caráter e as aventuras de seu herói interessantes por si mesmos.

Os limites do Pequeno Reino, seja no tempo ou no espaço, não são fáceis de determinar a partir destes parcos indícios. Desde que Brutus chegou à Grã-Bretanha, muitos reis e reinos surgiram e desapareceram. A partilha entre Locrin, Camber e Albanac foi apenas a primeira de muitas divisões provisórias. Fosse pelo amor à mesquinha independência ou pela ganância dos reis por ampliar seus territórios, guerra e paz, júbilo e pesar alternavam-se durante o ano, como nos contam os historiadores do reinado de Artur: uma época de fronteiras incertas, na qual homens podiam ascender ao poder ou tombar de repente; e os bardos tinham material em profusão, bem como platéias atentas. Em algum ponto desse longo período, talvez depois dos tempos do Rei Coel, mas antes de Artur ou dos Sete Reinos Anglo-Saxões, é onde devemos situar os acontecimentos aqui relatados; e sua ambientação é o vale do Tâmisa, com uma incursão a noroeste até as muralhas do País de Gales.

A capital do Pequeno Reino localizava-se, tal como a nossa, no extremo sudeste, mas seus limites são vagos. Parece que ela nunca se estendeu muito a oeste, Tâmisa acima, nem passou de Otmoor, na direção norte; e seus limites orientais eram indefinidos. Num fragmento de lenda sobre Georgius, filho de Gil, e seu pajem Suovetaurilius (Suet), há indicações de que a certa altura um posto avançado próximo ao Reino Médio teria sido mantido em Farthingho. Mas essa situação não diz respeito a esta história, que agora se apresenta sem alterações ou maiores comentários, embora o extenso título original tenha sido convenientemente reduzido para Farmer Giles of Ham (Mestre Gil de Ham).

As aventuras maravilhosas de Aegidius Ahenobarbus Julius Agrícola de Hammo

Aegidii ahenobarbi julii agricole de hammo
Domini de domito
Aule draconarie comitis
Regni minimi regis et basilei
Mira facinora et mirabilis erortus

ou, na língua do povo,

A ascensão e as aventuras maravilhosas de
Mestre Gil, fazendeiro, Senhor de Tame,
Conde de Worminghall
e Rei do Pequeno Reino

A história de Mestre Gil de Ham se passa em uma Grã-Bretanha mágica e imaginária pré-Rei Arthur. Uma época na qual gigantes e dragões ainda ameaçavam os reinos e os pobres habitantes da ilha. No harmonioso e sonolento vilarejo de Ham, vivia Aegidius Ahenobardus Julius Agrícola, que levava uma vida pacífica e calma – no melhor estilo de Bilbo, Frodo, Sam, Pippin, Merry… e de todos os hobbits do Condado! –, na companhia de sua esposa Agatha e de seu cachorro Garm – os cães tinham que se contentar com nomes curtos em vernáculo.

Todo o tempo de Mestre Gil – para os íntimos – era dedicado a manter-se gordo e bonachão, até que em uma bela noite, um gigante míope e bastante surdo invadiu suas terras sem perceber, esmagando Galathea, sua vaca predileta e destruindo seu plantio. Acordado pelos gritos de socorro do seu cachorro – sim, os cachorros falam –, Mestre Gil armou-se com o seu bacamarte (uma antiga arma de fogo de cano largo) e, tremendo de medo, atingiu o gigante no nariz e no olho com um disparo de pedras, ossos, arames e pregos. Pensando ter sido picado, o gigante acreditou estar em um pântano e resolveu ir embora dali.

Aclamado pelo povo como um herói – mesmo que ao acaso –, Mestre Gil de Ham adapta-se rapidamente à sua nova posição na sociedade, saboreando os seus privilégios, enquanto seus feitos chegam até os ouvidos do Rei Augustus Bonifacius, que lhe envia uma magnífica carta, um cinto e uma espada longa.

A vida de Mestre Gil transcorria às mil maravilhas até que as histórias contadas pelo gigante aos seus pares sobre terras riquíssimas, agradáveis e planas, mas repletas de mosquitos, chegaram aos ouvidos do terrível dragão Chrysophylax Dives, muito rico e de antiga linhagem imperial. Diante da escassez de alimentos em um rigoroso inverno, ele resolve partir para o reino de Augustus Bonifacius e instaurar o terror.

Feito herói por acaso, a contragosto e por maioria de votos, tendo sido, sem saber, sagrado cavaleiro pelo Rei e proprietário de Caudimordax – que ele imaginava ser um presente qualquer –, a famosa espada “morde-cauda”, que pertencera a Bellomarius, o maior de todos os matadores de dragões do reino, cabe a Mestre Gil de Ham, montando a sua égua cinzenta e acompanhado do seu covarde cachorro, a ingrata tarefa de combater o dragão e salvar o seu reino, encontrando pelo caminho a coragem que nunca teve e ganhando muito mais do que jamais poderia imaginar.

“Vocês perceberão que, não importa quem compre o livro, essa história não foi escrita para crianças; embora, como é o caso de outros livros, isso necessariamente não as impeça de se divertirem com ela.” – J. R. R. Tolkien, em uma de suas cartas.

Mestre Gil de Ham foi uma obra escrita originalmente para crianças e, muito embora no seu texto posterior Tolkien tenha tornado a sua narrativa mais sofisticada para que um público mais velho pudesse se aperceber de suas sutilezas, circulando, à época, inclusive, entre seus amigos acadêmicos, o coração da obra permaneceu essencialmente o mesmo. É uma leitura fácil e extremamente rápida, como aquelas histórias que os avôs e avós contavam na sala em dias chuvosos, mas não menos recomendada e meritória por isso. Tolkien mistura fantasia, aventura, sátira e erudição em uma narrativa inteligente, lúdica e espirituosa, carregada de intrigas políticas, esperteza e astúcia não tão óbvias a leitores jovens demais e também a outros mais velhos, mas desatentos ou menos sagazes. É uma das poucas obras de ficção de Tolkien que existe totalmente independente da “mitologia da Terra-Média”. Talvez, como semelhança a outros textos mais famosos como O Hobbit, apenas a jornada do seu herói, que relutante e improvável, termina por ser arrancado de uma vida de conforto para experienciar aventuras extraordinárias. Uma leitura para todas as idades, Mestre Gil de Ham é uma deliciosa jornada por um universo “tolkieniano” mais simples e delicado.

Mestre Gil de Ham (Farmer Giles of Ham) – Reino Unido, 1949.
Autor: J.R.R. Tolkien. Tradução: Waldéa Barcellos. Publicação no Brasil: Martins Fontes. Formato: 14 x 21, 102 páginas. Catalogação: Ficção, literatura infantojuvenil.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.