Observação: A história possui trilha sonora, escutá-la ou não durante a leitura fica a cargo de cada um.

ATENÇÃO! Não leia esta história sem antes ler o prólogo.
Prólogo: Steppenwolf: O Lobo e o Cordeiro.


NOVOS DEUSES
Capítulo 1: Os Peões e as Torres

“Dê poder a um homem, e descobrirá quem ele realmente é.” — Nicolau Maquiavel.


1

Sua face maligna era tão esplêndida quanto sua fisicalidade imponente, sua presença tão forte quanto a própria aura perversa que o envolvera, numa comunhão de sacrilégio e crueldade. Cada filete aéreo das redondezas se rendia ao flamejante calor que seu corpo emanava, numa amálgama de ardor e benevolência divina. Sua pele acinzentada era recheada de marcas profundas, cicatrizes e marcações da provecta época que fundira teu corpo ao Ômega; em sua cabeça, não denotava um fio de cabelo sequer, sendo igualmente tomada por um grandioso arco azulado a envolvê-la, assemelhando-se a um nobre capacete — uma coroa permanente, fazendo dele, visualmente, o verdadeiro e imutável Rei. Seus dentes carregavam um aspecto quadriculado, como uma caricatura, e seu hálito era forte suficiente para envolver qualquer indivíduo que dele se aproximasse. Suas rugas faciais denotavam, como as dos mais astutos Deuses, uma experiência surreal. Detentor de uma alcunha digna de poucos, uma capacidade de vida milenar. O perfeito e encarnado mal, o absoluto mal, portador de uma aparência majestosa. Uma indescritível… imponência viva, responsável por amedrontar até os mais poderosos seres de todo o cosmo.
ㅤㅤDe maneira singela, uma composição aérea avermelhada saía pelos olhos rubros, sem íris ou pupila, num calor ardente, como a própria brisa que o envolvera; deliberadamente digna do ardor do próprio Inferno. Suas vistas imponentes contemplavam seu provecto capanga, que esbanjava um amedrontamento colossal. Diferente de diversas outras ocasiões, não observava-o para puni-lo, para daná-lo, tampouco para intimidá-lo. Depois de muitos encontros, inúmeros séculos de serventia, via aquele provecto e franzino ser como um… amigo. Talvez, bem talvez, o que mais pode se chegar perto de tal sentimento; se tratando, obviamente, daquele cidadão. Um dos únicos que não o deixaram, em meio à tanta revolta, à tanta mudança de paradigma, à tanta imundície que seu atual lar sofria.
ㅤㅤEle esticou suas mãos, em bênção, no intuito do curioso homem beijá-lo em súdito.
ㅤㅤ— Oh, mestre Darkseid… eu… sinto muito. — Disse, pouco antes de apalpar a mão acinzentada do indivíduo, de maneira delicada e subalterna, levando-a posteriormente em direção aos lábios.
ㅤㅤEle observou seu sicário produzir o gesto que tanto o agraciava, capaz de convencê-lo da existência inabalável de seu poderio temível, residente ao menos em um sacro e singelo lugar no coração de seus subordinados.
ㅤㅤ— O que está acontecendo, mestre, é tão impensável — soltou, logo após beijá-lo, apalpando com grande louvor a maúça da entidade demoníaca à sua frente. — Tão… inadmissível.
ㅤㅤO melindre balançou sua cabeça em negação, transmitindo todo o semblante que desejara: a incredulidade perante o motim sofrido pelo reino de Apokolips. Suspirava profundamente, em murmúrio por misericórdia — não do novo governante, mas sim do astuto ser a quem chamava de mestre. Havia falhado, como muitos, na missão de proteger o trono e seu senhor.
ㅤㅤO catedrático mostrava-se rígido a contemplá-lo, calado, tremendamente pensativo. Apalpava teu astuto queixo ao mesmo tempo, acariciando-o de forma cíclica, como um opulento sábio — no fundo, era mesmo um dos cidadãos mais literatos de todo o Universo. Sentia, por suas narinas absolutas, a inquietação nos pulmões de seu esbirro, respirando com uma rudimentar dificuldade, preenchido por desprazeres praticamente inimagináveis perante os Novos Deuses do Inferno: o pavor e a angústia.
ㅤㅤ— Ele irá pagar, mestre. Todos eles irão.
ㅤㅤE o indivíduo soberbo piscou, lentamente, analisando o ar a adentrar e sair de forma assustadoramente lenta do corpo esguio daquele homem. Como se segurasse, a si próprio, numa súplica pessoal para não permitir que nenhum sentimento de impotência tomasse-lhe conta. Foi confiado a ele a tarefa de ser inapetente, tanto com os outros, quanto consigo mesmo. E, para sua graça, a devoção que transmitia era mais importante do que ele imaginava, agora, tratando-se de seu exímio monitor.
ㅤㅤ— Você sabe, mestre… — fraquejou, murmurando em calafrios que percorriam toda sua espinha. — Sabe que serei, até o final de todas as coisas, guiado pela sua vontade.
ㅤㅤBalançou novamente do cocuruto de maneira rápida, presencialmente tentando convencê-lo que falava a verdade. E, perante alguém como aquele maléfico indivíduo acinzentado, não era penoso investir na tentativa de transparecer suas sensações; trabalhoso mesmo era empenhar-se na formulação de uma mentira — porém, não era o caso, a devoção, mais do que exagerada, era real. Falava a mais íntima das verdades que o abalroava. O mais puro, sincero e, para seu fatídico destino, cruel sentimento de genuinidade.
ㅤㅤ— Obrigado, fiel Desaad. Fico grato por não você me abandonar… — Darkseid proferiu, agora apalpando com sua grandiosa pata a diminuta cabeça, em proporções, de deu subalterno companheiro. — Como os outros.
ㅤㅤO homem encarou-o, os olhos transbordando em lágrimas, marejados em demasia para contemplar sua perfeita e agraciada aparência perversa. Depois de tantos anos, de tantos milênios, sentia-se numa ligação especial para com seu astuto doutrinador; e, bem no fundo, suas emoções transpareciam a ele toda a efetividade de tuas ações. O mestre da criatura, embora estático como uma pedra, sentia a mesma coisa pulsante em seu coração, os mesmos pensamentos de saudação, observando-o com um nobre carinho.
ㅤㅤ— Eles… eles estão nos procurando. Temos que sair daqui, mestre. Temos que fugir — Desaad exclamou, o medo já ardendo em teu interior. — Temos que nos esconder.
ㅤㅤE ele foi almejado com um olhar de puro poder, de pura soberba, uma ostentação pessoal digna de poucos.
ㅤㅤ— Oh, Desaad… não há para onde fugir. Não há onde esconder. — Saiu, tão forte quanto seus músculos majestosos.
ㅤㅤFazendo cravar na pobre mente do indivíduo, de uma só vez, que todo o terror que vislumbrara era real. Seu desvaído olhar a encará-lo ganhou, no que sucedeu, ainda mais a forma de um pavor genuíno, algo dominante, que jamais imaginara sentir. Medo, não só por ele, mas pelo teu tão adorado líder.
ㅤㅤ— Vão matá-lo, mestre. Vão devorá-lo.
ㅤㅤDarkseid desviou suas vistas da pobre face do homem, levando-as de vez para o lado, no intuito de fitar a portaria de seu grandioso saguão real. Agora, já escutava os passos se aproximando, cada vez mais pesados e ajeitados, crescendo em substância e uniformidade em relação à direção que se encontravam. Seus ouvidos aguçados denunciavam, também, ventos quentes a serem cortados pelas asas dos demônios voadores, pairando logo acima de suas presenças, resmungando grandes berros inteligíveis. E percebeu que tudo o que poderia fazer, naquele exato momento, com a atual posição que detinha, era aguardar. Aguardar pelo pior.
ㅤㅤ— Podem tentar.
ㅤㅤE, quase que imediatamente, escutou um ronco a atingir a porta, de proporções magnânimas. Olvidou robustas tábuas de um madeiral refinado, daquelas localidades, a atingi-la, no intuito de derrubá-la de uma vez por todas, abrindo espaço para o caminhar demoníaco. Os burburinhos da madeira, quase rachando, agora faziam parte do aspecto grotesco que todo o ambiente denotava, igualando-se aos gritos infindáveis de espectros aprisionados e esquecidos. Como almas penadas, logo após o lamurio de finalmente partirem do mundo dos vivos, imploravam, impensavelmente, para adentrar no Inferno. E levar, com todos eles, o grande Demônio que os condenara à uma vida interminável de escravidão.
ㅤㅤ— Chegaram. A cavalaria de Steppenwolf.
ㅤㅤDarkseid alvejou-o com um olhar ilustre, desprovido de todo e qualquer temor. Aqueles demônios agitados estavam à procura da maior das recompensas: sua valiosa cabeça. Fresca, dilacerada, morta. E não descansariam enquanto não a conseguissem. Para o próprio bem daquelas criaturas, seu novo líder concedera não matá-los em troca do crânio desmantelado do provecto Rei.
ㅤㅤ— Que os Velhos Deuses nos guiem, mestre — Desaad continuou, voltando a encarar seu dono. Mais do que nunca, devoto. Até o fim, como prometera. — Por Darkseid.
ㅤㅤVislumbrou-o atentamente revirar seu cocuruto, mais uma vez em direção ao portal lamuriado, enquanto analisavam a madeira estilhaçando aos poucos com os golpes duros e incansáveis.
ㅤㅤ— Que os Velhos Deuses nos poupem de suas tolices e de seus provectos fracassos. — Bufou, remoendo toda a imprudente atitude de seus ascendentes.
ㅤㅤComo na grandiosa batalha que deu origem à Nova Gênese e Apokolips, os Deuses novamente duelavam uns contra os outros, perdidamente tolos; o ódio cada vez mais crescente para com seus iguais, numa brusca atitude vilanesca, visando o que sempre pareceu como a maior de todas as coquistas: o poder. A guerra, há muitas passagens, havia deixado de ser entre as divindades benignas e as malignas; agora, como nem os mais pessimistas puderam refletir, partira de uma ofensiva em relação à própria Apokolips, e, não muito breve, assolaria uma rivalidade contra todo o Multiverso.
ㅤㅤ— Por Darkseid. — O antigo regente daquelas terras bradou, confirmando sua confiança, mesmo que deteriorada, na vitória.
ㅤㅤE apenas aguardaram… aguardaram quietos e calados, contemplando os guardas amotinados arrancarem a porta e entrarem. Observaram de maneira ansiosa e soberana a imprudência de todos, numa ousadia imensurável de demonstrar toda a adoração perante o novo senhor que os guiava, enquanto encontravam o findar de suas vidas perante as mãos do único e verdadeiro Rei.

2

ㅤㅤOs esplendorosos olhos anis da moça lobrigavam o ambiente divino que a encobria. Do alto de uma grande estrutura metálica dourada, reluzente e maciça como puro ouro, contemplava os incomensuráveis seres poderosos esvoaçando, preocupados e afoitos, pelo espaço páramo índigo. Eram notoriamente banhados pelo brilho de uma estrela de fogo tão majestosa quanto a da Terra, embora possuísse uma aura superior, uma singularidade, que a distinguia de todos os outros astros flamejantes do cosmo. Aqueles indivíduos rodopiavam em meio às grandes aves nativas, suas asas repletas de penas coloridas, assemelhando-se ao mesmo arco-íris proveniente do território que os abrangia; acompanhavam como se fizessem parte de tal bando, justamente por compartilharem o mesmo e exuberante dom — aquele destinado somente aos Deuses.
ㅤㅤNova Gênese mostrava-se integralmente como um mundo envolto na feliz melodia da vida, tão delicado quanto as canções de Chopin, tão imponente quanto as composições de Beethoven. Não haviam estruturas em sua superfície verde, responsável por recobrir, em conjunto ao nobre oceano, grande parte da fisicalidade local. Possuía apenas uma estrutura, gigantesca e majestosa sobre seu firmamento, que flutuava pela superfície, sendo sustentada por mecanismos até então considerado ocultos — diziam as lendas que o próprio Pai Celestial, sob influências dos espectros dos Velhos Deuses, agora com seus almas residindo na Grande Fonte, formulara uma combinação ímpar de magia e bruxaria para servir como sustento de suas moradas. Tremulavam sobre o mastodôntico oceano azul, repleto de animais peculiares, espécies desconhecidas pelo homem — afinal, não faziam, e nem nunca fariam, parte de nossa flora —, num aquário a céu aberto tão esplêndido quanto todo o resto do planeta.
ㅤㅤSuas florestas naturais, magistralmente projetadas, guardavam segredos sublimes, dignos dos audazes e curiosos exploradores, que por ventura saíssem para decifrá-los. Uma terra de verdadeira paz e harmonia, muito embora, nos últimos tempos, estivesse passando pelo que ficou conhecido como Estado de Alerta, devido às incontáveis ameaças recebidas do reino vizinho, sob a tutela de seu novo líder. Agora, os Deuses daquele Paraíso preocupavam-se em demasia com os mais novos boatos que recobriam o Quarto Mundo. Rumores que cobriam seus corações bondosos de pavor e angústia.
ㅤㅤAo redor da coloração azul das luzeiras da bela dama, vastas lágrias de tristeza banhavam seus diminutos cantos úmidos. Ao acumularem suficientemente para não mais conseguirem se empilhar umas nas outras, caminhavam em sustância por sua tez esbranquiçada, passando pelas bochechas rosadas, cíclicas, calcorreando em algidez até a boca, onde produziriam aquele característico gosto amargo. As gostas mesclavam-se, ácidas, partilhando o mesmo sentimento dos muitos seres que contemplava andejando pelos céus, preocupados, pelo local ensolarado: medo.
ㅤㅤO ambiente não refletia todo o aspecto desolado de seus habitantes porque, desde sempre, fora confeccionado para ser o mais belo e majestoso ecossistema de todo o Universo; não cessaria seus suprimentos de luz aos habitantes, nem mesmo deixaria de ajudar sua flora característica a prosperar, valendo inclusive nos dias de treva. Era tão pomposo quanto a morada dos anjos, praticamente um novo e mortalmente palpável Paraíso.
ㅤㅤ— Oh, Pai Celestial… onde ele foi parar? — Rogou aos céus, mesmo que a figura de tua oração ainda permanecesse viva.
ㅤㅤEm teu peito robusto, acumulava soluços grandiosos, que vez ou outra apareciam em meio ao choramingo excessivo. Não fazia questão de expor-se fraca, atingida. Tudo aquilo que jamais deixaria transparecer perante seus inimigos impiedosos. Apenas rezava, sem parar, para que teu homem estivesse a salvo em algum lugar do infinito; clamava intrínseca e externamente por sua segurança, seu bem-estar, sua vitória perante o desafio imposto. Fosse como fosse, ele possuía a obrigação de retornar aos seus braços o quanto antes.
ㅤㅤ— Barda… — Órion quebrou o silêncio de minutos, tentando iniciar uma aproximação.
ㅤㅤSeu uniforme rubro característico indicara que não havia envelhecido um dia sequer de suas provectas e dificílimas aventuras do passado, no que sucedeu toda a descoberta do Pacto efetuado por seus dois pais.
ㅤㅤ— Não adianta nada ficarmos aqui, parados, esperando que Scott volte. Temos que tentar fazer alguma coisa.
ㅤㅤ— Fazer o que, Órion? — ela revirou teu rosto, fitando excessivamente os olhos do moço, que também lacrimejavam em desespero. — Ele nos fez prometer que cuidaríamos de Nova Gênese. Que não deixaríamos nada chegar até o Pai.
ㅤㅤO capacete prateado do jovem refletiu toda sua melancolia de forma ainda mais exacerbada, assim como sua vestimenta nobre e imponente. A dor era forte demais para ser sentida como ela vivenciava, mesmo que o mancebo em questão fosse considerado como seu próprio irmão. A dualidade entre as situações era algo difícil de digerir e enfrentar: ir atrás de quem ama, embora mantivesse esperança em suas habilidades e poder de vitória, ou proteger seu reino, mantendo a promessa.
ㅤㅤ— O Pai é mais forte do que pensamos. Além de nós, existem muitos outros protegendo-o. — Retrucou, o rosto igualmente tomado por um abatimento indescritível.
ㅤㅤ— Órion… — suspirou profundamente, os pensamentos vindo cortantes, em disparada, não sendo nada do que realmente queria dizer. — Nossa palavra é tudo o que temos. É uma das muitas coisas que nos transformam em deuses. Não podemos descumprir o que prometemos, embora sejamos relutantes.
ㅤㅤEla observou-o abaixar a cabeça, em rendição ao teu discurso, nutrindo o que mais poderia chegar próximo de uma vergonha.
ㅤㅤ— Tem razão, Barda. Como sempre — ele encarou as alturas, como ela novamente fazia. — Teremos fé, então. Fé em teu retorno. Fé em tua vitória.
ㅤㅤ— Sim, teremos — saiu, fininho. — Tudo o que nos resta é ter fé.
ㅤㅤAquele conjunto de olhares agora vislumbravam mais seres tomarem conta do ambiente ensolarado que os encobria, voando em um misto de aflição e preparo. Enquanto o exército imponente e poderoso se preparava para uma possível investida contra tal nação, aqueles mocinhos viam em Free a última de suas esperanças para parar Steppenwolf. A mensagem de que o mesmo havia declarado guerra ao cosmo espalhou-se rapidamente, curta e grossa para ser temida em sobejo, e combatida com uma força ainda mais presente e precisa.
ㅤㅤ— Scott… onde está você, meu amor? — A grande mulher voltou a bradar aos céus, cada vez mais acabrunhada.
ㅤㅤA esperança, mesmo que forte, era remodelada para aspectos miúdos, quase findados. O semblante de todos, com o tempo, transparecia uma desolação e uma descrença crescente. Nova Gênese depositara no Senhor Milagre suas últimas expectativas, ansiando pela derrota de Steppenwolf, para o cessar das ameaças mastodônticas que andavam recebendo. Sabiam que Scott possuía poderes que ninguém ali jamais imaginaria ter.
ㅤㅤ— Barda! Órion! — Uma voz caminhou, forte, pelo ar. Portava amargura, como não podia ser diferente.
ㅤㅤEra Magtron, o fiel escudeiro daquele reino. Um dos homens de maior confiança do grande Pai Celestial, e de todos daquela terra, guardião de uma luz inestimável dentro de si. Seus cabelos ruivos balançavam em meio ao vento, majestoso, e seu peculiar uniforme branco refletia não só toda a incidência dos raios solares, bem como o desconforto de seus antiquados amigos.
ㅤㅤ— Notícias do Senhor Milagre? — Desceu calmo, como um anjo, e pousou esbelto.
ㅤㅤAmbos olharam na direção do rapaz, em conjunto, externalizando uma extraordinária paz a atingi-los. Órion esticou os lábios em grado e, sem pestanejo, caminhou em tua direção no intuito de dar-lhe um enorme abraço. E assim o fez, desprovido de maiores constrangimentos. Ambos colaram teus corpos, firmes, e compartilharam a mesma admiração e sentimento. Juntos, eram tratados como guerreiros imbatíveis.
ㅤㅤ— Ainda não, Magtron — permitiu-se dizer após afastar minimamente sua face do parceiro. — Mas a esperança em vê-lo perpetua.
ㅤㅤEle sorriu, forçado. Empenhava-se em compartilhar a mesma expectação externamente; por dentro, já não mais acreditara em teu retorno. E, não muito depois, desgrudou-se da constituição física do amigo e foi igualmente abraçar Barda, que retribuiu o afeto carnal com a mesma intensidade de Órion. O ruivo, entretanto, sentiu que o corpo da mulher era bem mais desabastecido de forças — tanto as emocionais quanto as físicas —, como se já demonstrasse uma fraqueza pessoal perceptível em sua materialidade soberba.
ㅤㅤ— Eu não sei bem como as coisas estão caminhando, mas duvido que Steppenwolf consiga mesmo tudo o que planeja. — Soltou, logo após desvincular-se da moça entristecida.
ㅤㅤ— Eu confio em Scott. Sei que não pereceria diante de um ser tão promíscuo e ridículo quanto o tio de Darkseid. Por anos foi um mero capacho, agora não é diferente.
ㅤㅤ— Mas, tenhamos calma. Não vamos permitir que nosso ódio e descontentamento nos ceguem, minha amiga. — Magtron encostou uma de suas mãos no ombro da mulher. — Não podemos, nunca, duvidar de um Novo Deus. Do que ele pode fazer quando realmente deseja algo.
ㅤㅤ— Então este mesmo raciocínio vale para Scott. O desejo pela derrota de Steppenwolf corre em suas veias.
ㅤㅤ— É claro que vale. Mas não sabemos o grau de ameaça que ele representa ainda.
ㅤㅤÓrion aproximou-se, não desejando ficar para trás no discurso. Por mais sensitivo que demonstrava ser, aquele momento deveria ser tratado com demasiada racionalidade.
ㅤㅤ— Temos que analisar tudo o que vem acontecendo nesses últimos tempos.
ㅤㅤEla observou o rapaz de vermelho, atentamente, mesmo que não conseguisse tirar o marido de seus pensamentos. Nada tirava de sua cabeça que corria um perigo colossal, embora esforçava-se em afirmar que não — no fundo, tentando convencer a si mesma que sua vil meditação estava equivocada.
ㅤㅤ— Primeiro, a revolta. Depois, a confiança que ganhou da maioria dos indivíduos de Apokolips.
ㅤㅤ— Eu sei que ele não passou de um capacho desde que se aliou ao Dark Side Club, porém temos que ser lógicos quanto ao seu comportamento atual, quanto ao medo que anda atingindo até mesmo aquele planeta infernal — Magtron soltou, aflito. — Estou com um péssimo pressentimento quanto a isso, pessoal.
ㅤㅤÓrion encarou-o por segundos, movimentando sua cabeça positivamente.
ㅤㅤ— Eu também — soltou, retornando, logo após, suas feições para a garota em lamurio. — Aquele desgraçado está sendo uma ameaça até para o próprio Darkseid, Barda. Steppenwolf é incontrolável.
ㅤㅤE a visão dela novamente borrou, com os plangores descendo cada vez mais impiedosos.
ㅤㅤ— Fato é que Scott foi louco em seguir até ele, atendendo seu chamado. — Órion continuou, abaixando novamente a cabeça em prostração.
ㅤㅤ— Foi tolo em não nos deixar ir com ele. — Magtron exprimiu, fazendo o mesmo gesto de seu amigo.
ㅤㅤ— Parem… — Barda soltou, abalada, deixando que a melancolia tomasse conta de seu corpo exponencialmente com o passar dos milésimos. — Só… parem.
ㅤㅤLevou posteriormente ambas maúças na direção dos olhos e foi mais uma vez tomada pelo sentimento infindável que atingia sua mente há minutos. Voltou a soluçar em lamento e deu as costas aos dois rapazes, no intuito de novamente encarar as alturas, como se, assim, pudesse comunicar-se com seu tão amado Scott.
ㅤㅤAos prantos, buscava qualquer vestígio que a fizesse entender por que Steppenwolf havia chamado-o, dito que gostaria que ele comparecesse sozinho ao seu encontro, para que fosse produzida uma amigável conversa diplomática. Gostaria de compreender por que seu amado aceitou a proposta de maneira tão ágil e fácil, como deixou-se levar pelo desafio — ah, claro que seria um desafio; o tio de Darkseid nunca fora alguém de conversas corteses. E, com isso, as esperanças tornavam-se cada segundo mais dispersas, caminhando para a inexistência.
ㅤㅤ— O que ele quer de você, querido? — Saiu tão sorumbático quanto os clamores anteriores.
ㅤㅤMagtron encarou Órion, ainda cabisbaixo, contemplando-o com o canto de suas vistas, enquanto o rapaz fazia o mesmo. A dor exponencialmente mais presente, a preocupação de milésimo em milésimo mais crescente. Todos ali, aos poucos, sendo completamente abastecidos pela desesperança. Apelando, cada um, pelas assuadas suprassumas. Os dois, calados; ela, rogando todos os pensamentos que a acometiam em voz alta.
ㅤㅤ— Oh, Scott… onde quer que você esteja… escape. Por uma vez mais, escape — e lágrimas desciam, substancialmente mais pesadas, acompanhadas pelas exclamações cada vez mais altivas. — Liberte-se. Liberte-se e volte para mim, meu amor. Eu preciso de ti mais do que nunca.
ㅤㅤE, do alto, mesmo que isolado, velhinho e impotente, o Pai Celestial, assim como o astuto Criador de Todas as Coisas, de alguma forma, também escutava; e, do mesmo modo dos três, igualmente perdia as esperanças. Scott partira há pouco mais de dois ciclos — uma quantidade relativamente compatível a duas horas terrestres —, e, posteriormente, nenhum outro contato fora transmitido e escutado. Nem através de sua inteligente Caixa Materna, nem por algum outro aparelho de comunicação divino.
ㅤㅤEnquanto isso, o exército de Apokolips consolidava-se cada vez mais organizado, de segundo em segundo acumulando forças. A investida seria iniciada em breve, eles já sentiam, o que deixava todos que reclamavam da ausência do Senhor Milagre desmedidamente preocupados.
ㅤㅤ— Scott… — aos soluços, ela cada vez mais fraca, ainda esforçava-se para bradar; para clamar — Volte para mim, meu amor.
ㅤㅤÓrion e Magtron, em comunhão, foram na direção da moça e a abraçaram, numa tentativa singela de compartilhar todo o peso da dor que recobria teu corpo. A dor de, por mais que ainda mantivessem fios de esperança, finos e cada vez mais quebradiços, sua tão aguardada volta jamais chegaria.
ㅤㅤVolte…
ㅤㅤE não havia mais nada o que fazer.
ㅤㅤ— Volte para mim.
ㅤㅤE, para a cruel constatação de todos ali, o tempo passou, como sempre veloz demais para que pudesse ser contabilizado. Passou, e o querido Senhor Milagre jamais retornou.

3

ㅤㅤOs passos pesados avançavam, uniformes. Seguiam a linha dos grandes exércitos cósmicos, com soldados perfeitamente enfileirados, mesmo que fossem retardados o suficiente para portarem-se emocionalmente instáveis, numa marcha tão angustiante quanto o clamor de arrependimento dos espectros da Terra da Danação. O encontro de seus solados com o chão, consideravelmente imponentes, agregavam para si toda uma sonoridade maquiavélica, ecoando em meio aos quatro cantos daquele Estado praticamente tomado.
ㅤㅤEnquanto demônios marchavam a passo de ganço, consumindo suas vítimas espalhadas pelo solo quente, entidades voadoras, igualmente demonizadas, singravam pelo ar quente do planeta devastador, transportando consigo o desespero das lavas mortais que recusavam-se, desde o início dos tempos, a cessar a produção de suas exaustivas funções. Os vulcões a todo vapor, funcionando ininterruptivelmente a cada ciclo, agora denotavam um aspecto ainda mais intimidador.
ㅤㅤ— Venham! — uma de suas mãos robustas atingia a face endemoniada do soldado vil, enquanto a outra segurava o mesmo ser pelos ossos expostos do peito inchado. — Venham, podem vir!
ㅤㅤA voz que rogava em meio às lamúrias era alta, perversa, captada em substância por todo e qualquer ser que ousasse se aproximar de sua pessoa. Em teu íntimo, por mais pacóvio que isso pudesse parecer, era exatamente o que ele queria. Gostaria de se provar, mostrar a todos que jamais seria corruptível — não por causa de seu pai, mas de si mesmo —, e que jamais poderia ser vencido por mera escória existencialista.
ㅤㅤ— VENHAM! E eu farei picadinho de vocês, um por um! — cuspiu na cara do soldado já quase morto, enquanto tornava a socá-lo sem um pingo de piedade. — Por Kalibak!
ㅤㅤE perpetuou o contato brusco dos ossos de sua pata contra o crânio semi-aberto do indivíduo. Parecia, por mais perverso que possa parecer — tratando-se de um ser de Apokolips, a palavra perversidade sempre perdia o significado, já que era superada a cada definição —, que não queria apenas ferir o corpo do sujeito, mas sim tua própria alma — isto é, se realmente tivesse uma.
ㅤㅤO exército terrestre aproximava-se cada vez mais de sua localização, contemplados em exorbitância pela pessoa relutante. Não pareciam, para desespero mental daquele ser, nem um pouco temorosos perante suas ameaças patifes; assim como não exitariam em enfrentá-lo, de modo algum. A quantidade de homens amaldiçoados o dizimaria, instantes após coliderem contra teu físico, mesmo que fosse preciso gastar a vida de dezenas, centenas, ou milhares de soldados. Era um desejo do novo Rei, e ninguém ousaria interpôr contra um pedido seu. Mesmo perpetuando os passos em solo firme, o exército expandia-se pelas redondezas, marchando pelas alturas, com um amonturado de Parademônios já marcando presença sobre o céu avermelhado, logo acima do crânio do filho de Darkseid. Suas barrigas praticamente comunicavam-se umas com as outras, como um bando de urubus famintos, farejando de longe o medo que emanava do interior daquele sujeito, mesmo que não fosse corajoso suficiente para bradá-lo às alturas.
ㅤㅤ— VENHAM, DEMÔNIOS! PODEM VIR! — Lançou o corpo do defunto, que jazia sobre suas robustas maúças há algum tempo, na direção dos soldados do firmamento.
ㅤㅤE, de súbito, a marcha findou. Embora, contrariando os pensamentos absolutos do rapaz, o exército não estivesse transparecendo exitamento. Muito pelo contrário, finalizaram o andado para abrir caminho a um cidadão diferencial entre eles. Dentre o aglomerado de corpos erguidos, frágeis, que formavam aquele grandiloquente esquadrão, saiu um sádico e destemido guerreiro, que facilmente assenhorava-se como o mais perverso e preparado homem de todo aquele panteão.
ㅤㅤ— Kalibak, Kalibak… — abriu teus braços, os passos assentes indo em sua direção. — Por que não pega alguém do seu tamanho?
ㅤㅤO filho de Darkseid enfureceu-se no átimo que sucedeu a fala do sujeito, cerrando suas grossas sobrancelhas enegrecidas. Além de um horror que não gostaria de transparecer, o coitado exalava algo ainda mais sensitivo e apetitoso às mazeladas barrigas dos esfomeados demônios voadores… ódio. Um ódio grandioso e crescente perante toda aquela revolução orquestrada por Steppenwolf, e todos os seus seguidores que escancaravam traição perante o antigo regimento.
ㅤㅤ— Você ousa desafiar Kalibak, Bedlam? — rugiu como uma grande e faustosa fera, querendo transmitir tudo o que verdadeiramente sentia; embora não fosse realmente tudo o que parecia ser. — Ousa?
ㅤㅤO Doutor sorriu, mostrando-lhe todos os seus dentes amarelados e pontiagudos — na altura dos acontecimentos, você já deve ter percebido que os habitantes de Apokolips não eram muito regrados com higiene bucal. Era divertido em demasia ver a cria do antigo Rei falar, como um ratinho, querendo, depois de tudo o que andava ocorrendo, transmitir uma certa onda de pavor. Seus dias de soberania já haviam sido consumados, embora fosse infantil suficiente para não perceber.
ㅤㅤ— Eu não ouso, garoto tolo. Eu insisto que tente fazer, comigo, o mesmo que fez a esse demônio — bufou, revirando-se para estralar o seu pescoço; e aquela atitude do indivíduo fez Kalibak se enervar ainda mais. — Mas saiba que o fracasso virá. Seja pelas minhas mãos, ou seja pelo estômago dos famintos Parademônios acima de nós.
ㅤㅤ— Heresia! — uivou, a malquerença correndo pelas suas veias. — Espero que meu pai puna a cada um de vocês, seu bando de nojentos!
ㅤㅤ— Isso é impossível, rapaz estúpido. Darkseid está morto! — aquelas palavras atingiram o monstro como uma lança afiada e mortal; por mais absurdo que pudesse ser, carregava, talvez, uma certa onda de genuinidade. — E logo você também estará.
ㅤㅤPela primeira vez em décadas, Kalibak sentiu algo emanando pelo seu coração robusto e insensível. Não era o Ômega que tanto buscou durante a vida, tampouco a alegria que sempre duvidou da existência. Era um misto de raiva e pesar… pelas palavras curtas e grossas de seu oponente, expondo a suposta morte de seu progenitor. E refletiu por não mais esperar pela investida tão desejada. Gostaria de sentir, como os mortais, um orgasmo indescritível, em relação a cada osso quebrado de Bedlam, assim como cada rasgo em tua carne escura. E depois, daria algum jeito de fazer o que fizera de melhor ao logo de toda a sua existência: daria prosseguimento à surra nos Parademônios.
ㅤㅤ— POR KALIBAK! — Ele gritou, partindo a passos assustadoramente rápidos na direção de seu oponente.
ㅤㅤ— Ingênuo — o Doutor Bedlam proferiu, baixinho, enquanto observava o monstrengo se aproximar. — Como sempre, uma criança irresponsável e egoísta. Vovó deveria tê-lo treinado tão maquiavelicamente quanto treinou todos os outros. Sem regalias.
ㅤㅤE, como Kalibak, não perdeu tempo, singrando exuberante para cima do inimigo. A troca de socos que aconteceu fora tão trevosa quanto parecia que seria; os golpes acertaram, em cada um, os dentes, o peito, e todos os membros possíveis, na árdua missão de tentar, em excesso, derrubar o adversário desejado. Os soldados, ao lado, permaneceram intactos — era uma ordem restrita do próprio Doutor —, apenas esperando pela queda do estúpido filho de Darkseid. O físico de Bedlam era, assim como o de Kalibak, espantoso e invejável. Um monstrengo de vários músculos à mostra, incrivelmente parrudo, assustador como poucos integrantes do exército do governante Ômega. Teria sido uma briga extremamente justa, caso não fosse a deslealdade — habitual nos diversos torneios e embates entre os Novos Deuses de Apokolips — do líder do esquadrão bélico que ali estava.
ㅤㅤMovido pela insensata força do ódio, Kalibak, como o próprio Doutor o descrevera, não havia deixado de ser um tolo e ingênuo habitante daquelas calorosas terras. Ele esquecera de todas as peculiares habilidades de seu antagonista.
ㅤㅤCercando os dois, seis corpos do exército de demônios voadores foram possuídos, assimilando o poderio crescente de Bedlam em assumir fisicalidades desoladas e cruéis, fazendo com que o vilão, partilhando sua mente entre os escolhidos, fosse corporalmente superior ao adversário. E, subsequentemente, aquela divisão de raciocínios do Doutor partiu ao encontro da briga que os acometia. Não no intuito de pará-la — não, óbvio que não —, nem mesmo render Kalibak de uma vez por todas. O vil indivíduo tomou posse daqueles Parademônios para que o atacasse, fazendo com que a provecta cria de Darkseid perecesse em menor número, sendo, pouco a pouco, consumindo.
ㅤㅤE assim caminharam esvoaçantes, como um incontrolável enxame de abelhas, atacando o antigo príncipe daquelas localidades e colocando-o em seu devido lugar: de encontro à derrota; de encontro à Morte.

4

ㅤㅤComo uma maldição infindável, tal terra jazeria para toda a eternidade orbitando nas sombras, nos covis do cosmo, onde nem a mais absoluta prece poderia mudar teu habitual curso. Fruto de uma batalha milenar, que dividiu o Paraíso do Inferno, num plano onde, outrora, viviam juntas, como o bem e o mal se completando, num Yin Yang. Sua superfície era marcada por majestosos fossos, absolutamente repletos de fogo vivo, uma chama mortal, capacitada de punir as almas mais penosas, num sacrifício estonteante e doloroso. As fogueiras indômitas eram responsáveis pelas iluminações dos templos firmes e funcionais daquele firmamento, morada dos grandes lordes, donde haviam de julgar os vivos e os mortos, num sacro agraciamento divino de pura maldade. Apokolips… o atroz local onde as criaturas de fúria reverenciavam uma crença de ordem e destruição.
ㅤㅤAqueles vulcões imparáveis e infernais pareciam a cada instante mais desoladores. O fogo que corria em meio às suas margens, jorrados como água fresca de suas composições, irradiava toda a onda de horror e vilania que aquele ambiente carregava. Muito além do que um império glorioso das atrocidades universais, Apokolips era o que mais poderia se chegar perto do desolador Inferno Cristão. Teus seres caminhantes, amaldiçoados, jaziam pelas mazelas de uma escravidão sem fim — mesmo após a morte, onde tornavam-se astutos guerreiros demonizados —, os chicotes negros e sólidos alvejando suas colunas disformes, apenas rezando, de segundo em segundo, para que a dor que os abalroasse em seguida não fosse tão ferrenha quanto a que atingia-os no instante de suas preces.
ㅤㅤ— Enfim conseguimos, meus irmãos! — Virman bradou, do alto de uma grande torre, como um verdadeiro comandante aristocrático. — Tomamos Apokolips!
ㅤㅤAos seus pés, súditos convertidos e fiéis alvejavam-o com a maior de todas as reverências. Os gritos ensurdecedores dos Parademônios ajudavam a compor toda a vil festança no entorno dos ares em que suas palavras maléficas eram proferidas.
ㅤㅤ— É com imenso prazer que anuncio o que anda se espalhando pelos cantos do Quarto Mundo… — lambeu os lábios, saboreando suas próprias palavras. — É dito em torno às masmorras que enfim conseguiram a cabeça de Darkseid!
ㅤㅤE foi alvejado com mais clamores altíssimos, carregando toda aura desolada do mundo em que vivia.
ㅤㅤ— E, como podem perceber… — esticou suas mãos na direção do solo que assenhorava em substância à frente de teu corpo. — Desaad e Kalibak, os últimos opositores ao novo Mestre, estão largados à nossa vontade!
ㅤㅤOs homens jaziam amarrados, ainda conscientes. Apenas aguardando a bendita hora de tuas tão projetadas mortes. Fosse como fosse, não seria tão cruel quanto as torturas sofridas até aquele instante, os palavreados jorrados contra suas faces, as cuspidas disparadas e as salivas de esfomeamento que os banhavam.
ㅤㅤOs olhos vermelhos dos soldados geneticamente modificados, cintilantes como sangue fresco, eram penetrantes e maquiavélicos às vistas horrorosas dos dois seres submissos. De suas cabeças, antigamente estonteantes, pairavam apenas pensamentos pavorosos, que cortejavam a Morte a cada suspiro das entidades afaimadas que os envolviam.
ㅤㅤ— EU QUERO DEVORÁ-LOS! — Saiu da boca de um dos membros do exército, controlado unicamente pelo respeito às ordens maiores.
ㅤㅤ— Você irá, inseto! — Virman voltou a dizer, absoluto; suas sobrancelhas levantadas como um nobre homem detentor de poder. — Todos vocês se deliciarão com cada parte desses malfeitores.
ㅤㅤE mais gritos de euforia perversa ecoaram em meio às montanhas marrons solitárias, murmurando como as lamúrias dos vulcões, num uníssono abalador. Um emaranhado de mãos erguidas, assemelhando-se a um grandioso e contemplativo torneiro mortal.
ㅤㅤ— Vundabar… — as palavras atingiram-o pelas costas, desavolumadas. — Deveria tomar menos o brilho pra você.
ㅤㅤEle fitou a pessoa que aproximava-se com uma felicidade estonteante — não por vê-la, mas pelo seu atual estado. Nada parecia retirar o sorriso vil de seu rosto hórrido.
ㅤㅤ— É meu dever convertê-los, Vovó — continuou, o riso maléfico ainda apoderando-se de toda sua face. — Sabe que eu não consigo evitar um holofote.
ㅤㅤBondade retribuiu o sorriso, de maneira incrivelmente forçada e falsa. Por anos fora fiel a Darkseid, seu nobre senhor de todo o mal; todavia, nenhuma amarra seria capaz de prendê-la no lado dos perdedores. Não exitava em transparecer o misto de sentimentos que sentia naquele instante aterrador, para a hegemonia do antigo reino de Apokolips. A situação transmitia toda uma aura de delicadeza, embora estivesse mais do que claro quem era o mais recente governante de tais terras.
ㅤㅤ— Por anos tentou tomar o lugar de nosso antigo mestre. Porém jamais conseguiu. — ela manteve os lábios esticados, alvejando o pateticismo que exalava em meio à aparência do homem — Jamais teve bolas como Steppenwolf agora foi capaz de ter — deu-lhe uma notável braçada, indo contra teu corpo, e empurrou-o de seu atual lugar; como se tirasse ele, à força, de seu tão sonhado posto. — Por mais que sempre vire os holofotes para você, nunca deixará de ser o que foi destinado: um mero capacho. Um coadjuvante.
ㅤㅤVundabar a fitou com o maior dos olhares de ódio, intrinsecamente reconhecendo toda a audácia que suas palavras carregavam. Infelizmente, Bondade, como era no reino de Darkseid, havia sido escolhida para ser a segunda na linha de comando de todo o exército demoníaco, no intuito de fazer o que fez a todos os os que passaram pelos seus cuidados — Kalibak, Scott, Bedlam, dentre muitos outros. E Virman, como ela mesmo dissera, não fora capaz nem de sair da sombra patife a qual sempre pertenceu.
ㅤㅤBondade, esbanjando um misto de sorriso doce e cruel, como em todas as vezes, tomou o cargo mais alto da varanda da torre e deu prosseguimento ao grande discurso de posse do novo líder.
ㅤㅤ— ATENÇÃO, DEMÔNIOS! — ergueu as mãos, plena; suas rugas provenientes de sua idade avançada apenas destacavam sua experiência maligna e bélica. — A nossa tão aguardada hora finalmente chegou. A hora de conquistarmos o Multiverso!
ㅤㅤA torcida portava-se cada vez mais calorosa, os gritos caminhavam pelo ar como um caldeamento de ansiedade, horror e comemoração. Para aqueles biltres seres de mente danificada, tudo sempre pareceu ter espírito de festa.
ㅤㅤ— Devorem esses salafrários que choramingam sobre nossos pés… — sorriu, satânica, apontando na direção de Desaad e Kalibak. — E iniciem o mais rápido possível a invasão contra Nova Gênese!
ㅤㅤOs bafos sonoros que saíram em meio ao hálito dos soldados demoníacos consolidou todo o discurso endiabrado. Seus dentes afiados encontravam-se sedentos por carne e sangue, há dias não faziam uma refeição bem-feita, já que findaram os devoramentos contra os escravos para angariar um maior número de combatentes. A mando do novo senhor daquelas terras, sacrificaram dias de alimentação pela alimentação eterna, como prometido.
ㅤㅤ— Tragam-me agora suas cabelas santificadas! O banquete há de começar em breve!
ㅤㅤE finalmente aprontou suas falanges brancas para frente, na posição da Terra Prometida do cosmo, exalando em substância todo seu âmago de aprendizados ditatoriais e vilanescos. Seus braços erguidos denotavam mais do que um gesto de poder e grandiloquência, denotavam, unicamente para si, um gesto visando um plano maior.
ㅤㅤ— Por Steppenwolf! — Gritou, retirando as palavras do fundo de seu peito superficialmente decidido.
ㅤㅤE todos os Parademônios e demais soldados gritaram em conjunto, em uma união sonora tão angustiante quanto o brado da própria Morte.
ㅤㅤ— POR STEPPENWOLF!
ㅤㅤSem delongas, alguns dos mais esfomeados ficaram para devorar a carne de Desaad e Kalibak, que amarguraram em sofrimento sem ninguém para ajudá-los, enquanto os mais apressados seguiram o curso desejado pela discursante, singrando rapidamente na direção de Nova Gênese, em um abundante Tubo de Explosão, ansiando demasiadamente por iguarias frescas. Levaram consigo, mais do que fome: levaram caos, medo, poder… e soberania.
ㅤㅤE foi assim que os grandes Peões partiram, movimentando-se em exorbitância vontade para o ataque. Unidos, como todo bom exército de peças descartáveis, eram mais fortes — todo bom jogador sabe disso; e Steppenwolf não era apenas um bom jogador, era um dos melhores. Enquanto, do solo quente do planeta infernal, as Torres esforçavam-se para manter tudo em perfeita ordem, dando aos indivíduos demonizados suas encarregadas missões.
ㅤㅤO jogo havia, enfim, começado.

5

ㅤㅤEm meio às estrelas reluzentes, uma presença pairava, flutuando no vácuo universal, alçado ao teu próprio destino — estava tão atento quanto você, leitor, observando o andejar de toda a história. Demonstrava uma curiosidade astronômica a recobrir todos os cantos de sua mente, numa sutileza de emoções, tão incrédulo quanto qualquer um que viera a descobrir o destino de todas as peças daquele tabuleiro. Sua surpresa representada, desde já, mesmo que em dualidade a um sentimento de espanto, moldava-se incrivelmente verdadeira ao conhecer a respeito da sina de cada um daqueles seres; possuía, sob sua vasta sapiência, a instrução de todas as mortes a acontecer, da quantidade de sangue a ser derramado, dos grandes vitoriosos do final da grande guerra — na verdade, isto dependeria de um certo ponto de vista — e de todas as outras informações que pudesse imaginar, ou desejar.
ㅤㅤMetron situava-se decolando em sua Poltrona Mobius, detentora de toda a sabedora do Universo conhecido. Desde o passado, e todas as suas etapas de formação; cruzando pelo presente, que acompanhava com tamanha curiosidade; indo até o futuro, com a conclusão de todas as coisas, a comunhão de todos os pecados. Dentre os seres de sua raça, os Novos Deuses, aquele peculiar indivíduo era o mais próximo que algum deles conseguiria chegar de ser Deus. De fato, o verdadeiro. Onisciente, onipresente, onipotente. Os olhos que a todos observa. Só não partilhava o dom da punição — este, claro, era tido como um talento restrito ao Senhor de Tudo.
ㅤㅤPorém, diferente do que possa parecer, Metron não possuía tamanha autoridade por si só. Não, não, obviamente não. Tais dons foram concedidos a ele exclusivamente pela honra de sentar-se em tal Poltrona — a mesma que carregava o nome de um dos mais imponentes e perversos seres que as múltiplas realidades catalogadas já puderam conhecer. A sabedoria para ele enviada era uma das formidáveis formas que o objeto encontrava de enquadrar-se sobre tal pilar, mostrando-se como a mais desenvolvida e perigosa arma — ou como queira chamar — do cosmo. Aqueles que tanto almejam o poder… se frustrariam ao perceber que jamais teriam a autoridade de quem possuísse tal selim. Nada, absolutamente nada, era comparável a ela. E isto era responsável, na maioria das vezes, por colocar um vasto sorriso no rosto daquela divindade.
ㅤㅤComo Deus, Metron via… Scott Free sendo devorado a sangue frio, Darkseid caindo, as criaturas caminhando pelo Tubo de Explosão completamente esfomeadas… e todo o desespero dos inocentes, a ânsia por saciedade dos demônios, e a curiosa soberba divina, almejando se igualar em tamanho e grau com suas próprias habilidades. Mas ele sabia… sabia que tudo aquilo era patético. Então manteve-se firme, meramente como um astuto observador.
ㅤㅤContemplava com graça o futuro… o futuro que encaminhava — e encaminharia — sem a sua interferência, como sempre deveria ser; afinal, foram poucas as vezes que envolveu-se em algo pra valer. E, em surpresa de si próprio, acompanhou diminutas lágrimas escorrendo pelo teu rosto albugíneo, uma acidez referente à todo o dano que acompanhara; um detrimento não físico, mas emocional. O grande abatimento dos Novos Deuses, que em breve pereceriam diante do mesmo destino dos Velhos. E tudo o que entende-se por real e imutável, sofreria mudanças.
ㅤㅤMesmo que suas vistas lacrimejassem, as gotas inevitavelmente descendo, pesadas, caminhando por sua tez, permitiu-se soltar um breve sorriso — não de glória ou felicidade, mas sim de nervosismo. Afinal, mudanças eram vistas como necessárias, a história sempre provara a veracidade disto. Depois da separação do arcaico planeta, na provecta e primordial Guerra Divina, os Novos Deuses foram fadados à prosperidade. O célebre Pacto tornou-se, então, a mais nobre das parcerias; porém, como as incontáveis peças pregadas pelos contos, ele de nada adiantou. A rivalidade entre Nova Gênese e Apokolips perpetuou, firme e forte, enquanto os filhos continuaram trocados, tendo suas vidas para sempre remexidas, com um destino — cruel ou benevolente — imposto a cada um.
ㅤㅤE Metron analisava todo o desenrolar, como dito. Bem na palma de suas mãos, possuía acesso ao início… e ao fim de todas as coisas. Via a narrativa como um grande livro sagrado, do qual ele detinha permissão para visualizar integralmente as cenas. A história mostrava-se linear, conseguia foleá-la em qualquer ordem, qualquer direção. Adiante no tempo até sua conclusão — como eu faço agora, caro leitor, analisando toda a narrativa em minha mente —, depois de volta à cena de abertura. A grande saga dos Deuses; dos Velhos, dos Novos… e dos Mais Novos, como deverão ser chamados após o aguardado fim.
ㅤㅤE cada vida parecia encarnar-se na pele de minguados personagens. Eles pareciam desavisados em relação à sua observação, tomados pela falta de atenção e pelo despreparo, tendo suas mentes lidas, seus pesamentos expostos, suas fraquezas descobertas, tão transparentes como uma simples linha impressa sem peso algum. Pelas primeira páginas, conhecia seus futuros, assim como suas origens, as identidades que escondiam até mesmo dos que amavam — mas que, para ele, não reservavam surpresa alguma. Via suas atitudes futuras, seus feitos irreversíveis. Acompanhou suas perdas e, mais ainda, vislumbrou suas conquistas. Tanto do lado do bem, quanto do lado do mal, num belo romance dramático, repleto de reviravoltas.
ㅤㅤMetron sabia… ele sabia de todas as surpresas que o desenrolar da história guardara. Mas, como dito, não poderia intervir; não… não agora. Então, cabia a ele apenas aguardar, acompanhar em detalhes tudo o que a grande guerra daqueles tempos guardava, contemplando, em corpulência, cada peça a ser movimentada.
ㅤㅤEstava ansioso por ver, enfim, cada um dos acontecimentos tomando forma.

Continua…


Inspirado pelos personagens da DC Comics.
Os Novos Deuses, assim como toda a mitologia do Quarto Mundo, foram criados por Jack Kirby.

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Sobre o Autor

Apaixonado por quadrinhos, cinema e literatura. Estudante de Matemática e autor nas horas vagas. Posso também ser considerado como um antigo explorador espacial, portador do Jipe intergaláctico que fez o Percurso de Kessel em menos de 11 parsecs — chupa, Han Solo!