1889. Noite chuvosa em Red Bluff, Montana. A câmera aproxima-se da entrada de um saloon. A música e a alegria que exalam do interior do estabelecimento são interrompidas por um tiro e pelo som de móveis sendo quebrados. Um homem cambaleante sai e cai morto no meio da rua enlameada. Dois homens se aproximam do corpo; um entra no saloon em busca do criminoso; o outro fica do lado de fora, de tocaia. Em instantes, a dupla captura o assassino que tentava escapar. No dia seguinte, a justiça implacável da forca é o destino daquele homem.

A sequência de abertura de The Ballad of Lefty Brown já introduz de imediato o espectador no ambiente clássico do Velho Oeste, com suas mortes fúteis (uma aposta de pôquer de dois dólares é a motivação do crime inicial), justiça implacável e vidas peregrinas – os dois homens logo estão cavalgando pelas padrarias rumo a outra cidade. Os dois homens são o lendário xerife Eddie Johnson (Peter Fonda) e seu amigo de quatro décadas e fiel escudeiro, Lefty Brown (Bill Pulman), em uma dupla que evoca icônicas parcerias do gênero entre heróis virtuosos e velhos rabugentos e engraçados, como John T. Chance (John Wayne) e Stumpy (Walter Brennan) em Onde Começa o Inferno (1959), de Howard Hawks.

Estamos presenciando a reta final do Velho Oeste. O progresso está chegando com suas ferrovias e políticos e tribunais. Eddie acaba de ser eleito senador pelo estado de Montana e precisa viajar para Washington, deixando para trás a vida como xerife e a sua fazenda, que ele pretende colocar sob os cuidados do parvo Lefty, contra os protestos de sua amorosa e decidida esposa Laura (Kathy Baker), que não acredita que o desajeitado ajudante será capaz de assumir tal tarefa, por mais bondoso e amigo que seja.

Tudo muda quando Eddie é assassinado a tiros por Frank (Joe Anderson) – ao lado de Lefty, o sangue espirrando em seu rosto. O parceiro do herói, que sempre viveu à sua sombra, vê-se desnorteado diante da realidade da justiça na fronteira, mas determinado a levá-la ao assassino do seu melhor amigo. Dois amigos que fizeram parte do grupo de Eddie e Lefty reaparecem. Jimmy Bierce (Jim Caviezel) prosperou na política e tornou-se governador de Montana, vindo dar o auxílio necessário para Laura, enquanto o xerife Tom (Tommy Flanagan), um ex-alcoólatra que teve a esposa sequestrada e assassinada por índios, tenta convencer Lefty, sem sucesso, a deixar que o Exército tome conta da situação – mas acaba eventualmente se juntando ao antigo amigo na missão de caça aos bandidos.

No caminho, Lefty encontra o jovem Jeremiah Perkins (Diego Josef), aspirante a pistoleiro e ávido leitor de revistinhas sobre as lendas do Velho Oeste (nas quais sobram histórias com as façanhas de Eddie e Tom, nenhuma delas mencionando Lefty), que termina por se tornar uma espécie de ajudante e aprendiz do homem que não foi incluído em nenhum daqueles quadrinhos. A partir daí, The Ballad of Lefty Brown transforma-se em uma jornada clássica por vingança pelas planícies infinitas dos EUA – com a belíssima fotografia de David McFarland capturando em 35 mm todo o esplendor das paisagens naturais de Montana. Só que a narrativa se desdobra com um diferencial: é o parceiro, o coadjuvante, o tipo bobo e desajeitado, que não é bom em nenhuma das habilidades necessárias para se tornar uma lenda do Oeste americano, que converte-se, gradualmente, no herói.

E Lefty precisa superar muitas reviravoltas para que isso aconteça e ele possa vingar a morte do seu amigo. Uma vez que consegue deter Frank e seu bando, volta para casa (o rancho de Laura, o único lugar que ele já chamou de lar), tentando salvar a vida de um ferido Jeremiah, apenas para descobrir que está sendo acusado de ter assassinado o seu melhor amigo. Em um Oeste cínico, onde interesses políticos sobrepõem amizades de décadas, o senador foi morto por se opôr ao progresso que uma ferrovia representaria para a região. Um ridicularizado e desacreditado Lefty precisa então tirar o seu amigo Tom do vício no qual voltou a se afundar diante das suspeitas criadas sobre Jimmy, e lutar contra tudo e contra todos, inclusive contra suas próprias limitações, para expôr os verdadeiros responsáveis pela morte de Eddie.

O elenco de The Ballad of Lefty Brown está recheado com boas performances: Fonda tem pouco tempo em tela, mas o suficiente para convencer como um tipo virtuoso e lendário; Baker é a mulher de fibra que precisa manter o rancho diante das ameaças de perdê-lo e que deseja vingança pela morte do marido. A cena em que ela recebe a trágica notícia é um primor, ecoando em tintas tristes a abertura e o encerramento de Rastros de Ódio (1956), de John Ford: arrumando-se no quarto para a volta do marido, um sorriso diante do espelho é entrecortado para a mulher saindo pela porta ao findar do entardecer purpúreo, câmera por trás do seu ombro, a alegria pelo retorno do amado convertendo-se em desespero ao avistar o seu corpo sobre um cavalo; Josef é o jovem fascinado pelas aventuras entre pistoleiros que logo é confrontado com a cruel realidade da vida; Flanagan tem momentos incríveis como o amigo fiel e herói trágico que volta a cair no vício após uma sequência tensa com Frank; e Caviezel compõe um vilão frio e dissimulado, que não hesita em deixar as amizades antigas para trás em prol do que julga ser o melhor para o desenvolvimento do seu Estado.

Só que a coroação de tudo está no protagonista do título, interpretado magistralmente por Bill Pulman. Seu Lefty com um quê de Stumpy é simplesmente contagiante. O personagem tem uma aura humorística tão natural que convence e cativa com extrema rapidez. Começando a narrativa como um arquétipo clássico do western (o escudeiro do herói), Lefty rapidamente é tirado de sua zona de conforto e desconstruído pelo roteiro ágil de Jared Moshé. Daquele homem que apenas acompanhava o herói em tudo, e não tomava as decisões ou fazia as escolhas, ele precisa se redescobrir e se reinventar por força das circunstâncias, revendo sua trajetória e tomando para si o dever de fazer justiça ao seu grande amigo. O coração do personagem é completamente exposto ao público nessa gradativa transformação, guiada pela sensível atuação de Pullman. Lefty Brown vive realmente a sua balada, a sua canção. Do eterno ajudante que fica ao largo para o homem que assume as rédeas e faz justiça. De Stumpy a John Chance, sem perder a excentricidade e bravura do primeiro, mas adquirindo a capacidade de decisão e engajamento do segundo.

O diretor e roteirista Moshé tanto captura as paisagens de Montana como um personagem próprio, algo bem característico do gênero, conferindo ares de épico a esses imensos territórios onde as franjas da lei ainda não alcançaram plenamente, quanto é intimista na ação, jamais atribuindo aspectos de heroísmo exacerbado a Lefty, mas antes preferindo colocá-lo no centro dela, com muita câmera de mão e sequências pensadas e erguidas a partir de sua perspectiva – da morte de Eddie ao tiroteio contra Frank e sua gangue, passando pela tensa cena no final com Lefty e Tom armados e rodeados por vários soldados prestes a sacar suas armas, vemos tudo “pelos olhos” de Lefty; sabemos tanto quanto ele.

Extremamente reverente ao gênero que certa vez o renomado crítico e teórico francês André Bazin definiu como “o cinema americano por excelência“, The Ballad of Lefty Brown é um filme divertido e sincero, com amplas doses de emoção e graça, apresentando temas e elementos que são facilmente reconhecíveis até para quem não tenha muito conhecimento sobre western, mas sutilmente subvertendo um clichê clássico e colocando um eterno coadjuvante no centro da sua narrativa. E o sensacional Lefty Brown de Bill Pulman, em sua balada, sua “peça dramática“, toma essa oportunidade única para si, assumindo sua posição no rol dos grandes personagens que o western tem legado ao público desde os primórdios do cinema.

The Ballad of Lefty Brown (The Ballad of Lefty Brown) – EUA, 2017, cor, 111 minutos.
Direção: Jared Moshé. Roteiro: Jared Moshé. Música: H. Scott Salinas. Cinematografia: David McFarland. Edição: Terel Gibson. Elenco: Bill Pullman, Kathy Baker, Jim Caviezel, Peter Fonda, Tommy Flanagan, Diego Josef.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.