A história do Pantera Negra começa em julho de 1966, nas páginas de Fantastic Four #52, revista da família de super-heróis que deu origem ao universo Marvel e de onde saíram várias das mais extraordinárias criações da editora. Concebido pela dupla Stan Lee e Jack Kirby em plena ebulição da luta pelos direitos civis dos negros americanos, o protetor de Wakanda tem uma grande importância, já que foi o primeiro super-herói negro dos quadrinhos – antes dele tivemos poucos heróis negros, e nenhum com superpoderes –, e ainda abriu o caminho para vários outros super-heróis surgirem nos anos seguintes, como Falcão (1969), Luke Cage (1972), John Stewart (1971), Blade (1973), Raio Negro (1977) e Ciborgue (1980).

Cinquenta e dois anos após a sua criação, o descendente mais famoso de uma longa linhagem de heróis-guerreiros ganha o seu primeiro filme solo em live-action, após uma participação importante e destacada em Capitão América: Guerra Civil (2016), com uma produção histórica para o cinema de entretenimento, de orçamento estimado em US$ 200 milhões, protagonista negro, elenco majoritariamente negro, um talentoso e jovem diretor negro e também uma equipe técnica por trás das câmeras de maioria negra – roteirista, produtor, figurinista, designer de produção, curador de trilha sonora… todos negros.

Uma semana após a morte do rei T´Chaka no atentado perpetrado pelo Barão Zemo na ONU, o príncipe T´Challa (Chadwick Boseman) retorna à Wakanda para ser coroado o novo rei. Diante das aparentes divisões tribais que compõem a misteriosa e avançada nação africana, o Pantera Negra precisa manter a união do seu povo, enquanto luta para que as conquistas tecnológicas e riquezas do lugar permaneçam ocultas ao resto do mundo sob a capa de um pobre país africano de terceiro mundo. Em meio às cerimônias religiosas e às reuniões com um conselho de sábios de todas as tribos, duas sombras do passado ressurgem nas peles do vilão Ulysses Klaue (Andy Serkis) e do misterioso Eric (Michael B. Jordan) para amplificar todos os problemas e colocar em risco o futuro do reino.

O roteiro de autoria de Ryan Coogler e Joe Robert Cole é extremamente eficiente na condução de uma história amarrada, mas sem excessos, repleta de intrigas políticas e ação obrigatória a filmes do tipo, além de resvaladas sutis em aspectos históricos sobre colonização e dominação, e também na introdução de uma enorme gama de novos personagens coadjuvantes que orbitam ao redor do protagonista, todos eles possuindo arcos relevantes ao longo da narrativa e relações aprofundadas entre si – não há um único personagem que seja descartável na teia narrativa criada pela dupla.

Em poucas linhas de diálogo, Coogler e Cole estabelecem a relação de irmandade e implicâncias constantes que existe entre T´Challa e Shuri (uma carismática Letitia Wright), sua irmã mais nova, gênio tecnológico de Wakanda, que é responsável por alguns dos momentos mais engraçados do longa-metragem; a fidelidade irrestrita de Okoye (Danai Gurira roubando a cena a todo instante) ao seu país, a liderança que exerce sobre as Dora Milaje, o esquadrão de elite wakandiano composto apenas por mulheres, além do seu sarcasmo constante; a espiã Nakia (uma sempre encantadora Lupita Nyong’o), ex-namorada do protagonista, e os resquícios ainda visíveis da relação romântica entre os dois, além da necessidade que a personagem sente de auxiliar os que sofrem fora das fronteiras do país; W´Kabi (Daniel Kaluuya), amigo do novo rei e marido de Okoye, treinador de incríveis rinocerontes gigantes, e líder da Tribo da Fronteira, responsável por proteger as fronteiras de Wakanda e M´Baku (Winston Duke), poderoso guerreiro da tribo dos Jabari, nas montanhas geladas de Wakanda, apegado às tradições da sua terra e disposto a contestar o reinado do Pantera Negra.

Martin Freeman retorna como o agente da CIA Everett K. Ross, servindo como ponte entre Wakanda e o resto do mundo e tendo uma participação decisiva no terceiro ato. Os dois peso-pesados Angela Bassett e Forest Whitaker interpretam, respectivamente, a rainha Ramonda, mãe de T´Challa, e o líder espiritual Zuri, que trazem experiência e sabedoria para tudo aquilo que cerca o novo rei. Rei que Boseman interpreta com ainda mais elegância do que já havia mostrado anteriormente, esbanjando realeza como um monarca poderoso e justo, transitando entre as várias fases por que seu personagem passa, da necessidade de ser um líder perfeito que tome decisões corretas para o bem da sua nação, do peso que a culpa pelos atos de T´Chaka lançam em seus ombros, até ser capaz de escutar os argumentos daqueles que querem matá-lo e aproveitar o que de bom eles possam ter, rejeitando uma herança que permaneceu imutável por séculos.

Os adversários do novo rei de Wakanda surgem no cenário adicionando doses elevadas de ambiguidade ao roteiro. Se Ulysses Klaue – um Serkis de cara limpa em participação pequena, mas destacada, inserindo camadas divertidas de insanidade e esquizofrenia ao primeiro vilão do Pantera Negra nas HQs – é um “homem mau” em stricto sensu, um cruel e imprevisível gângster e contrabandista de armas que foi o único estrangeiro a entrar em Wakanda, roubar vibranium, assassinar algumas pessoas (entre elas o pai de W´Kabi) e sair com vida, Killmonger é um antagonista, um opositor, um radical perigoso, caminhando na tênue linha que separa opiniões moralmente válidas de atitudes amplamente questionáveis – não hesitando em matar quem quer que seja para alcançar seus objetivos.

Movimentando-se na direção contrária à de T´Challa, o personagem de Michael B. Jordan possui uma história com motivações críveis. Um trágico prólogo em um conjunto habitacional de Oakland no ano de 1992, envolvendo Zuri, T´Chaka e N´Jobu (participação curta do excelente Sterling K. Brown), um Cão de Guerra, espião de Wakanda, estabelece as raízes do passado tortuoso de Erik, justificando as origens da sua revolta contra os sistemas de governo ao redor do mundo, que transparece através de inflamados discursos ideológicos, em mais uma ótima atuação de Jordan, que estrelou os dois filmes anteriores de Ryan Coogler.

Atuando como um paralelo ao nascituro governo de T´Challa, que ao herdar o trono vê-se obrigado a lidar com os pecados escondidos que emergem do reinado de T´Chaka, o ex-soldado expõe os dilemas e contradições da conduta isolacionista de Wakanda, servindo como um obstáculo que o Pantera Negra precisa superar para retomar o leme de um país dividido, e também como um contraponto que termina fazendo com que o rei wakandiano repense as próprias escolhas históricas da avançada nação africana e a sua postura como líder – ratificada com perfeição na nobreza digna de um verdadeiro rei na conversa entre os dois diante do pôr do sol de Wakanda, logo após o confronto final.

Para além de todas as muitas qualidades evidentes, uma das coisas que mais impressiona em Pantera Negra é a construção do país (e dos povos que o habitam) que compõe o universo fictício do super-herói, incrustado no coração da África. Wakanda é uma antiga civilização erguida ao redor de uma fonte inesgotável de vibranium, o mais resistente e valioso metal do universo Marvel, que veio parar na Terra após a colisão de um meteorito – uma bela animação no início conta toda essa história.

O encontro entre o design de produção de Hannah Beachler, do premiado Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016), além de parceira de Coogler em Fruitvale Station: A Última Parada (2013) e Creed: Nascido para Lutar (2015), a fotografia de Rachel Morrison, também de Fruitvale, e que assina a fotografia de Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi (2017), e o figurino da lendária Ruth E. Carter, de Mais e Melhores Blues (1990), Malcom X (1993) e Amistad (1998), entrega um dos trabalhos mais espetaculares da Marvel Studios nesses aspectos, sendo responsável por construir um mundo fictício palpável e crível, na sua mescla particular de ancestralidade e futurismo.

Da evidente – e necessária – inspiração no traço do genial Jack Kirby, que fundiu tribalismo com tecnologia avançada de ares alienígenas nas histórias do Pantera Negra, Beachler cria um desenho de tecnologia que se difere daquele que habita o universo de Tony Stark, marcando a singularidade do desenvolvimento de Wakanda, e um país fulgurante, onde regiões rurais, com criações de ovelhas e outros animais, convivem em harmonia com opulentas cidades futuristas, recheadas com arranha-céus de arquiteturas particulares e autênticas – a primeira vez que vemos Wakanda resume com perfeição essa dualidade, quando a nave que transporta T´Challa, Okoye e Nakia sobrevoa vários cenários naturais típicos da África, até ultrapassar o escudo holográfico de proteção e adentrar os céus de uma cidade tecnológica no coração da selva.

A fotografia de Morrison auxilia Coogler na composição de belas sequências. Enquanto Wakanda surge brilhante e preenchida por cores quentes, o negrume e a roxidão fundem-se na nova versão do traje do Pantera Negra, que está todo contido no colar que T´Challa carrega e absorve energia cinética, e no líquido extraído da erva coração, responsável pelos poderes do protetor de Wakanda através de um ritual milenar que também transporta a sua mente para o plano ancestral, onde estão as almas de todos os antepassados que carregaram o título do herói, transformados em felinos que descansam nos galhos de uma árvore iluminada por místicos céus púrpuras. Nesse cenário idílico, T´Challa tem conversas tristes e duras com o seu pai, na curta, mas certeira, participação do experiente John Kani.

Sendo Wakanda um país africano que jamais foi colonizado pelos europeus, Carter aproveita esse distanciamento para mergulhar de cabeça na cultura de várias civilizações antigas do berço da humanidade. O resultado é simplesmente espetacular e o trabalho de figurino estabelece os costumes de uma nação única, com dezenas de belíssimas composições extremamente variadas que constituem um verdadeiro quebra-cabeça da história africana. Figurino, maquiagem, penteados, adereços, pinturas corporais, cânticos religiosos, ritos cerimoniais, roupas de combate, simbolismos… todos esses aspectos são encharcadamente multicoloridos e visualmente únicos, diferenciando não apenas cada uma das tribos de Wakanda em características ímpares, como também distribuindo traços peculiares a cada indivíduo que surge em tela, por menor que seja a sua participação. O trabalho da figurinista é impressionante de tal modo, que não causa estranheza que aquela infinidade de tribos que constituem o reino africano caminhem pelas ruas de um país altamente tecnológico com trajes que parecem saídos de séculos passados.

Para ser rei, T´Challa precisa lutar em um combate cerimonial na borda de uma altíssima catarata contra guerreiros de outras tribos que, por direito, desafiem a sua coroação – seja contra M’Baku ou Killmonger, Coogler roda ótimas lutas corporais. Na batalha contra traficantes de mulheres temos os golpes ágeis e certeiros de um Pantera Negra engolido pela escuridão sendo iluminados pelos disparos das metralhadoras dos adversários que caem um a um. Já em um luxuoso cassino clandestino em Busan, na Coreia do Sul, o jovem cineasta conduz a melhor sequência de ação do longa-metragem (de inspirações nítidas em filmes do 007), fazendo uso de plano-sequência e de múltiplas situações que ocorrem ao mesmo tempo em um espaço sob tiroteio, culminando com uma estonteante perseguição de carros pelas ruas estreitas e iluminadas por letreiros néon da cidade. Pantera Negra é dirigido com segurança pelo excelente cineasta, com sua câmera a rodear constantemente os personagens.

A edição cadenciada da dupla Debbie Berman e Michael P. Shawver consegue fazer um dos filmes mais longos (134 minutos) da Marvel Studios se tornar um dos menos cansativos. A trilha sonora é outro destaque, com dois trabalhos distintos coexistindo. Os temas instrumentais de Ludwig Göransson transportam o espectador para a África, com seus sons tribais, tambores e vocais ritmados que combinam perfeitamente com as sequências nas quais são utilizados. E sob a curadoria do rapper Kendrick Lamar (também compositor e produtor), as canções originais conferem ao filme um ar contemporâneo – Lamar monta uma equipe de estrelas da música e de revelações de fora do mainstream para compôr um painel moderno da música negra que passeia pelo hip-hop, o rhythm and blues e o soul.

Pantera Negra mergulha fundo na mitologia híbrida criada por Stan Lee e Jack Kirby em 1966 para o primeiro super-herói negro dos quadrinhos e também na riquíssima cultura africana, estabelecendo um universo fictício repleto de personalidade que funciona tanto em seus aspecto futurista quanto em seu aspecto ancestral. Com um visual único, ótimas sequências de ação, roteiro auto-contido, uma história povoada por personagens carismáticos, devidamente interpretados por um elenco recheado de atores talentosos, um protagonista de presença e um antagonista como poucas vezes se vê em filmes do gênero, o décimo-oitavo filme do Universo Cinematográfico da Marvel e terceiro filme da carreira do talentosíssimo Ryan Coogler é mais um acerto da Marvel Studios em sua caminhada de dez anos na produção exclusiva de filmes de super-heróis.

Sem fazer proselitismo, discursos ideológicos baratos ou forçar a barra em debates raciais, Pantera Negra permite que a representação do que poderia ser uma África livre da exploração alheia e altamente desenvolvida seja percebida a todo instante (o monólogo da cena pós-créditos é um espetáculo) em um blockbuster de ação e aventura de primeira linha, com toques de thriller político, significativamente cultural, representativo, dotado de uma forte identidade própria, e que resvala em temas importantes e sempre atuais sobre isolacionismo, colonialismo e postura de países ricos em relação a países pobres, mas sem jamais perder de vista o ludismo de uma história fantástica sobre um super-herói que se veste como uma pantera negra e governa uma nação inteira no coração da África.

Pantera Negra (Black Panther) – EUA, 2018, cor, 134 minutos.
Direção: Ryan Coogler. Roteiro: Joe Robert Cole e Ryan Coogler. Música: Ludwig Göransson e Kendrick Lamar. Cinematografia: Rachel Morrison. Edição: Debbie Berman e Michael P. Shawver. Design de produção: Hannah Beachler. Figurino: Ruth E. Carter. Elenco: Chadwick Boseman, Michael B. Jordan, Lupita Nyong’o, Danai Gurira, Letitia Wright, Winston Duke, Andy Serkis, Martin Freeman, Daniel Kaluuya, Angela Bassett, Forest Whitaker, Florence Kasumba, John Kani e Sterling K. Brown.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.