Joey, não dá para viver com um assassinato. Não dá para apagar isso. Certo ou errado, é uma marca, e uma marca fica. Não dá para voltar atrás. Agora volte para a sua mãe e diga a ela que está tudo bem, que não há mais armas no vale.”

As clássicas frases ditas por Shane (Alan Ladd) a Joey (Brandon De Wilde) na espetacular sequência final de Os Brutos Também Amam (Shane), histórico western de George Stevens (clique aqui para ler a crítica), são reproduzidas ipsis literis em um momento crucial e profundamente emocional de Logan. Em outra parte, durante o segundo ato, Charles Xavier assiste a Os Brutos Também Amam na TV de um hotel com uma expressão eivada de admiração e prazer, enquanto Laura brinca em sua cadeira de rodas. Em inúmeros frames, podemos ver as cenas de Os Brutos Também Amam tomando a tela inteira – três momentos distintos, em certa medida referenciados também na narrativa, são claramente mostrados: o assassinato de Stonewall por Jack Wilson, o seu funeral e o duelo final entre Shane e Wilson. Laura logo para e começa a assistir, e Charles conta que aquele é o seu filme predileto, um dos maiores da história e que o viu pela primeira vez no cinema ainda na adolescência.

As referências explícitas e reverentes – além de muito bem encaixadas na narrativa – a Os Brutos Também Amam não estão presentes em Logan à toa. Uma das inspirações declaradas de James Mangold, o western – e em especial os personagens do western – constitui o coração e a alma de Logan – que até mesmo no seu título busca inspiração em uma das tradições estilísticas do gênero e suas inúmeras titulações de obras com o nome único do protagonista: Shane, Hondo, Django, Keoma, Maverick, McLintock!

Em HQs clássicas do personagem, como Lobo Ferido (1986), de Chris Claremont e Barry Windsor-Smith, Origem (2001/2002), de Paul Jenkins e Andy Kubert e Velho Logan (2009), de Mark Millar e Steve McNiven (esta última que serve de leve inspiração para a história de Logan), e nas inúmeras histórias sobre o seu passado (as missões para o Serviço Secreto Canadense, o projeto Arma X, a vida como animal selvagem nas florestas do Canadá, o encontro com o casal Hudson…), a influência arquetípica do western é notória na construção do Wolverine, que sempre encarnou em si muitos dos elementos clássicos do homem do Oeste. O personagem experiente, arredio, com uma história sombria e repleta de violência, que nunca para de se mover, ansiando deixar tudo para trás, e que sempre vê pedaços do seu fragmentado passado, da inconfiabilidade de suas próprias memórias, emergirem contra a sua vontade, ao mesmo tempo em que torna-se protagonista e herói de maneira relutante sempre foram características encarnadas pela persona de Wolverine nos quadrinhos – e o western é pródigo em protagonistas relutantes: de John Wayne a Clint Eastwood, inúmeras são as figuras do tipo interpretadas por grandes astros do gênero.

Em 2029 os mutantes estão praticamente extintos – não nasce um homo superior há pelo menos 25 anos. Logan (Hugh Jackman) trabalha como chofer de limosine usando seu verdadeiro nome, James Howlett. O passado ficou para trás e o nome Wolverine soa mais como a memória de um personagem famoso de outrora, transformado em boneco de ação com uniforme amarelo e cujas lendas viraram tema de histórias em quadrinhos. Com o dinheiro do seu trabalho, Logan cuida de Charles Xavier (Patrick Stewart) em um silo abandonado próximo da fronteira entre EUA e México, com a ajuda de Caliban (Stephen Merchant), o mutante rastreador.

Charles, a mente mais poderosa do planeta, sofre de uma doença degenerativa que o transforma em uma potencial arma de destruição em massa, necessitando de remédios diários para impedir que as coisas saiam do controle. Quando uma enfermeira mexicana coloca em suas vidas a misteriosa Laura (Dafne Keen), uma menina aparentemente muda e incrivelmente semelhante a Logan, Donald Pierce (Boyd Holbrook) e seus Carniceiros, comandados pelo dr. Zander Rice (Richard E. Grant), iniciam uma caçada que se estenderá por todo o país.

Enquanto os créditos surgem na tela, a sequência inicial dita o tom do que veremos no decorrer do filme. Uma gangue tenta roubar as calotas da limosine quando um cambaleante e alquebrado Logan acorda e sai do carro. Extremamente envelhecido, Logan tem uma tosse insistente e manca constantemente. Um tiro à queima-roupa revela que o seu fator de cura já não funciona como outrora. As garras revestidas de adamantium saem com extrema dificuldade, o sangue escorre por suas mãos, mas o que vemos a seguir é um vislumbre do bom e velho Wolverine, brutal e agressivo. Em poucos instantes assassina todos ao seu redor, cravando-lhes as garras em suas cabeças, peitos e pernas, em um festival gráfico de sangue e violência.

De El Paso, Texas, fronteira com o México, com suas paisagens áridas e quentes, até Dakota do Norte, fronteira com o Canadá, região das Grandes Planícies (e das famosas florestas canadenses de Alberta, cenário característico das clássicas histórias do Wolverine), Logan, Xavier e Laura partem em uma jornada em busca de refúgio pelo coração dos Estados Unidos da América, em um legítimo road movie. A dinâmica entre os três personagens é o motor narrativo de Logan. O modo como os três se relacionam entre si (Logan e Xavier, Logan e Laura, Xavier e Laura, Logan, Xavier e Laura) é, sem sombra de dúvidas, a coisa mais essencialmente X-Men que nós já tivemos no cinema. Os mutantes nunca foram uma equipe de super-heróis como as outras. Uma reunião de pessoas tão díspares, de partes distintas do mundo inteiro, que lutam por aqueles que os temem, unidas não pelo sangue, mas pelo gene X. Complementam-se como uma equipe perfeita nas batalhas, e convivem como familiares fora dela. E é justamente isso que o roteiro de Michael Green, Scott Frank e James Mangold entrega em Logan. Os três personagens constroem uma família na estrada, com momentos de extrema ternura e um tocante senso de humor. Logan e Xavier possuem desde o início uma interessante relação de pai e filho que comove o espectador, Xavier surge como a figura de um avô para Laura, e a calada e intensa menina estabelece com Logan um relacionamento que evoca, em certa medida, as clássicas relações dos quadrinhos entre Wolverine e Kitty Pryde e Wolverine e Jubileu, com um Carcaju sempre relutante, mas que no fundo nutre o desejo de proteger a menina.

O Logan de Hugh Jackman, envelhecido, abusando do álcool, olhos sempre avermelhados e feridas que não cicatrizam mais, surge finalmente com todas as características que o tornaram popular entre os leitores de quadrinhos, tanto na famosa segunda formação dos X-Men, na mítica fase da parceria entre Chris Claremont e John Byrne, quanto em suas inúmeras histórias solos: um personagem difícil de lidar, com um humor ácido e respostas sempre grosseiras e cortantes. Ele não é um herói, e ele não quer ser um herói; tudo que Wolverine quer é esquecer o seu passado – ele se irrita quando alguém o chama de Wolverine – e seguir em frente.

Patrick Stewart interpreta um nonagenário Charles Xavier incrivelmente envelhecido pela maquiagem, de voz tremida e frágil. A mente mais poderosa do planeta precisa de remédios diários para que sua telepatia não se descontrole e ele acabe provocando uma tragédia – e vislumbres dessa possibilidade são habilmente demonstrados em dois momentos-chave do filme. Tudo que Xavier deseja é viver em família apenas mais uma vez. Apenas mais um dia. Sua confusão mental e seus lapsos o entristecem, mas ele ama Logan como a um filho, e enxerga em Laura, a primeira mutante vista em muitos anos, um sopro de esperança, uma visão do futuro. Seu Xavier é afetuoso, engraçado (alguns dos melhores momentos cômicos do filme pertencem ao Professor X, que até mesmo a língua mostra para Logan) e o ponto de equilíbrio entre a fera envelhecida (Logan) e a jovem fera vibrante (Laura).

Sem falar durante quase o filme inteiro, Dafne Keen é um destaque imenso como Laura, alternando com maestria entre a pueril inocência infantil (como quando brinca no cavalo mecânico do lado de fora de uma loja de conveniência e se irrita quando ele para, querendo porque querendo que o brinquedo continue balançando) e a fúria incontrolável de uma máquina assassina que arranca cabeças e decepa braços com uma facilidade impressionante. Ao lado de Xavier, consegue arrancar enormes sorrisos do público com a sua inadaptação às convenções sociais (destaque para o jantar com a família Munson, uma das sequências mais bonitas do filme) e sua personalidade extremamente forte e decidida. A atriz mirim é expressiva em seus olhares e gestos, e mesmo ao lado de performances formidáveis de dois grandes atores, Jackman e Stewart, rouba a cena inúmeras vezes.

Os vilões não se destacam, à exceção de Donald Pierce, que Boyd Holbrook constrói como uma figura imprevisível. Os Carniceiros são meros soldados sem nome e sem rosto que surgem em cena apenas para serem mortos das maneiras mais criativas possíveis por Logan e Laura. Se isso pode ser encarado por alguns como um grande problema, acaba não tendo muita relevância na história que James Mangold resolveu contar em Logan. Estamos diante da jornada do trio protagonista, Logan, Xavier e Laura. É o relacionamento entre eles que importa – e cativa –, e os vilões possuem a única função narrativa de mover a trama sempre para frente.

As sequências de ação são competentes e viscerais. Desde o começo, paira no ar a sensação de que qualquer personagem pode morrer repentinamente. A classificação indicativa mais alta não foi adotada de forma gratuita. A extrema violência presente em Logan, do início ao fim, serve à história de um modo que filme algum baseado em quadrinhos jamais se serviu – ou precisou. Depois de dezessete anos, Logan permite que vejamos, em cenas de uma brutalidade incômoda, o Wolverine irascível que nunca havia dado as caras no cinema. As coreografias de luta são rápidas e dinâmicas, mas não há cortes excessivos nem câmera tremida; os combates são velozes e visualmente compreensíveis, com closes rápidos destacando o sangue e as vísceras das cabeças e órgãos perfurados, dos membros arrancados pelas garras dos dois mutantes, e também dos gravíssimos ferimentos que as armas dos Carniceiros infligem a eles. Enquanto Logan é lento, uma sombra de outrora, mas ainda assim uma máquina de matar, a pequenina Laura é extremamente veloz e assassina seus inimigos utilizando-se de saltos e rodopios dos mais engenhosos possíveis.

A direção de James Mangold é também habilidosa e precisa, com closes dos personagens, em especial de suas mãos, rostos e expressões, ajudando a construir a jornada narrativa, ao mesmo tempo em que encontra, nos planos externos, belas tomadas do interior norte-americano, desde as paisagens desérticas do Texas até a vegetação extensa e exuberante de Dakota do Norte, auxiliado pela fotografia de John Mathieson, que trabalha muito bem com as tonalidades das várias locações do filme – destaque para a cúpula em que Xavier vive, o hotel onde os três se refugiam, o jantar na casa dos Munson, e as florestas da fronteira canadense – e pela trilha sonora incidental de Marco Beltrami, com o dedilhado de um piano que soa nostálgico e triste o tempo inteiro.

Antes de ser um bom filme baseado em histórias em quadrinhos, Logan é um bom filme. Ponto. A mistura de western, road movie e thriller de ação criada por James Mangold funciona – e muito bem. Logan convence quem não conhece nada sobre o personagem ou sobre quadrinhos, ao mesmo tempo em que inúmeras são as referências colocadas no filme para agradar aqueles que são fãs – dos quadrinhos contando as histórias dos mutantes que Laura lê ao boneco de ação uniformizado nas mãos de uma criança, temos até mesmo a barba característica do Wolverine sendo “feita” de um modo hilário, referências ao projeto Arma X, e a um certo Instituto Xavier para Jovens Superdotados, “meu ‘pai’ já foi diretor de uma escola“.

O roteiro pode ter algumas situações forçadas em determinados momentos, e uma reviravolta que poderia ter sido construída de outra forma, ou com um outro personagem, mas as qualidades de Logan são tantas que suprimem os eventuais – e poucos – problemas. Com performances cativantes do trio de protagonistas, ótimas sequências de ação, uma boa fotografia, trilha sonora competente e uma estética ao mesmo tempo decadente e contemporânea, Logan entrega uma despedida mais do que digna do personagem que o australiano Hugh Jackman interpretou por quase duas décadas. Drama, ação, violência, afeto, ternura, companheirismo, humor… o capítulo final da jornada cinematográfica daquele que é o melhor naquilo que faz irá emocionar o espectador com seus tons de melancolia. Um Logan experiente e trágico, quebrado fisicamente e emocionalmente, dá adeus ao público. Permanece a certeza de estarmos diante de um dos grandes filmes baseados em quadrinhos de super-heróis já feitos, completamente único e fascinante, diferente de tudo que o gênero produziu anteriormente – e o gosto amargo na boca ao lembrar que os filmes anteriores do Wolverine poderiam ter sido tão bons quanto.

Logan (Logan) – EUA, 2017, cor, 137 minutos.
Direção: James Mangold. Roteiro: Michael Green, Scott Frank e James Mangold. Música: Marco Beltrami. Cinematografia: John Mathieson. Elenco: Hugh Jackman, Dafne Keen, Patrick Stewart, Richard E. Grant, Boyd Holbrook, Stephen Merchant, Elizabeth Rodriguez, Eriq La Salle, Elise Neal, Quincy Fouse.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.