Depois de anos em uma carreira mediana como ator, na qual o maior destaque é um papel coadjuvante como o policial David Hale em Sons of Anarchy, série dramática da FX, Taylor Sheridan enveredou com enorme sucesso para os roteiros, assinando as histórias do excelente Sicario: Terra de Ninguém (2015), dirigido por Dennis Villeneuve, e do fantástico A Qualquer Custo (2016), dirigido por David Mackenzie. Em Terra Selvagem, esplendidamente fotografado por Ben Richardson na alvura da neve da Reserva Indígena Wind River, em Wyoming, Sheridan escreve o seu terceiro roteiro, mas também faz a sua (promissora) estreia como diretor – e espiritualmente é como se o longa-metragem completasse uma informal trilogia temática sobre as fronteiras americanas.

As histórias desse texano de 47 anos de idade parecem habitar um universo similar, onde é possível perceber a influência arquetípica dos westerns na construção narrativa e a predileção por uma atmosfera de violência e aridez que rodeia – e tenta sufocar – os seus personagens, invariavelmente pessoas amarguradas vivendo, de algum modo, à margem da sociedade. Inspirado em fatos reais, Terra Selvagem acompanha a investigação sobre a morte da nativa Natalie Hanson (Kelsey Chow), encontrada com sinais de espancamento e agressão sexual nas entranhas geladas das montanhas de Wyoming, no coração da reserva indígena que dá nome ao filme em inglês.

Cory Lambert (Jeremy Renner) é um oficial de pesca e caça que procurava leões da montanha que haviam atacado o gado da família do seu ex-sogro quando encontrou o corpo da jovem Natalie, amiga de sua filha Emily, que foi morta três anos antes também em circunstâncias similares – e cujos responsáveis pelo crime jamais foram encontrados. Como a investigação de assassinatos de nativos norte-americanos é de responsabilidade federal, o FBI designa a inexperiente agente Jane Banner (Elizabeth Olsen) para o caso, simplesmente por ela estar mais próxima da região. Jane luta contra a desconfiança do xerife Ben (Graham Greene) e ao perceber a experiência que Cory possui sobre a região, pede a sua ajuda na intrincada investigação.

O roteiro de Taylor Sheridan não é apressado – e nem a montagem de Gary D. Roach, que controla o ritmo com maestria, indo da calmaria à intensidade explosiva com habilidade e em questão de segundos. A história mergulha lentamente na criminologia do caso, detalhando a situação dos corpos encontrados – Matt Rayburn (Jon Bernthal em curta, mas ótima participação), namorado de Natalie, converte-se no primeiro suspeito da dupla, mas seu corpo também acaba sendo encontrado nas montanhas nevadas do lugar –, mas o interesse primordial de Sheridan não é construir um filme de mistério, mas sim dirigir e dedicar um olhar aprofundado sobre a situação dos indígenas norte-americanos nos dias de hoje e as motivações que movem aqueles homens e mulheres que tiveram suas culturas quase extintas – além da trajetória de Cory, um americano que convive diretamente com essas pessoas, foi casado com uma indígena (Wilma, interpretada por Julia Jones) e tem um filho mestiço (Casey, interpretado por Teo Briones).

Terra Selvagem expõe o quão distantes todos eles estão de seus antepassados. Em determinado momento, Martin Hanson (Gil Birmingham), pai de Natalie, cobre seu rosto com uma pintura tribal, azul e branca, uma “face de morte”, que ele é obrigado a imaginar em seu rosto porque nunca teve antepassado algum para ensinar-lhe os costumes dos arapahos. No outro extremo geracional, os jovens vivem sem perspectivas de futuro, a maioria deles entregue às drogas e ao ócio, vivendo vidas miseráveis e decadentes, como Chip Hanson (Martin Sensmeier), o outro filho de Martin, que vive em um trailer mequetrefe na companhia de outros delinquentes.

Quando Jeremy Renner entra pela primeira vez na Reserva de Wind River, a sequência é emblemática: a câmera focaliza um grupo de índios fazendo fogo em um latão na beira da estrada e logo em seguida movimenta-se na direção da bandeira dos EUA, hasteada de ponta-cabeça no mastro. A inóspita região no centro-oeste de Wyoming surge esplendorosa na fotografia de Ben Richardson, que captura as vastas planícies cobertas de neve com extrema beleza. O cenário extremamente adverso, no qual uma pessoa caminhando descalça terá apenas alguns minutos de vida antes de morrer sufocando no próprio sangue, funciona também como elemento narrativo, ampliando a sensação de opressão e angústia que as situações de vida daquelas pessoas provocam.

Em meio ao turbilhão de eventos, o diretor se permite também construir composições de rara beleza, como a primorosa cena de abertura, que acompanha uma desesperada e ofegante Natalie correndo descalça na neve, a cada passo aproximando-se mais de uma morte inevitável, uma sequência triste, emoldurada pelo belíssimo quadro noturno da montanha, lua cheia no céu, enquanto lê-se em off o poema “Uma pradaria em meu mundo perfeito“, escrito pela filha de Cory: “E quando já congelada ante a crueldade do mundo, longe dos seus doces olhos, retornarei a este lugar, fecharei os meus e meu único consolo será ter conhecido você.”

A sequência seguinte mostra um rebanho de ovelhas sendo observadas por lobos em uma alva planície – e os lobos sendo observados por Cory: “Você não pega lobos procurando onde possam estar. Procure onde eles já estiveram.” Também há cenas curtas, mas de impacto duradouro, como a desconfortável conversa entre Jane e Martin, que considera um insulto o comentário da agente do FBI, que diz não entender como o casal pôde ter deixado a filha de 18 anos viver com um homem que não conheciam. Em seguida, Jane pede para falar com a esposa de Martin, apenas para encontrá-la flagelando-se no silêncio do quarto.

O relacionamento de Cory com o filho e a cultura arapaho é brilhantemente resumido em uma sequência na qual o garoto monta um cavalo sob os olhos atentos do pai, a câmera em planos curtos e fechados, estabelecendo a intimidade entre pai, filho e animal, enquanto os raios de sol pintam a composição com um aspecto onírico. Casey diz que montou como um vaqueiro, um cowboy. Cory o corrige: “Não, filho. Foi como um arapaho, sua tribo.”

Um pouco antes das resoluções finais, Terra Selvagem entrega um clímax absolutamente sensacional. Um impasse envolvendo Jane, o xerife, alguns policiais e vários homens que trabalham no Departamento de Energia, armas apontadas uns para os outros, gritos desferidos, câmera movendo-se incessante entre os personagens, termina aparentemente sem sustos, apenas para evoluir na direção de um tiroteio curto e mortífero poucos minutos depois, em uma sequência que parece saída dos melhores westerns de Sam Peckinpah, o “Poeta da Violência“. Um desfecho potente e brutal (envolvendo Jeremy Renner e um criminoso sem botas no alto de uma montanha) encerra a história criminal e ainda sobra tempo para as feridas pessoais serem lambidas em sequências ternas e tocantes: de Jane, no hospital, com Cory; e de Cory com Martin, no quintal da casa do arapaho.

É aqui, no berço de tudo que me é caro, que guardo cada recordação de você“, diz um outro trecho do poema de Emily, narrado na abertura de Terra Selvagem. A morte de Natalie abre ainda mais no sombrio e enigmático Cory (e Jeremy Renner entrega uma atuação excelente, repleta de nuances), inteiramente sulcado pela tragédia familiar, feridas que jamais se fecharam completamente. Nessa jornada por montanhas geladas e crimes covardes, o experiente caçador irá trilhar uma espécie de redenção pessoal – mas não de esquecimento, jamais. Vivendo no mesmo lugar onde conheceu sua esposa, apaixonou-se, teve filhos e trabalhou e trabalha a vida inteira, o berço de tudo que lhe é caro neste mundo, cada pedacinho de todas as coisas é uma recordação constante a Cory de todas as dores que o acompanham e acompanharão pelo resto da vida. Não há outro lugar para ir. Não há outro lugar para onde se queira ir. Não se pode escapar da dor. O único consolo é se acostumar com ela. Um monólogo avassalador de Cory para Martin irá resumir tudo que a excelente estreia de Taylor Sheridan como diretor tem a dizer sobre o luto e a dor:

“Tenho notícias boas e ruins sobre o luto. A ruim é que você nunca mais será o mesmo, nunca mais se sentirá completo. Nunca mais. Você perdeu sua filha, e nada vai substituí-la. A boa é que, assim que aceitar isso, você se permitirá sofrer. Você se permitirá visitá-la em sua mente. Você se lembrará de todo o amor que ela lhe deu e toda a felicidade que ela teve.

O problema é que é impossível fugir da dor. Se fugir, você só rouba a si mesmo. Rouba a si mesmo todas as memórias que possui dela. Absolutamente todas. Desde o primeiro passo dela até seu último sorriso. Elas serão todas apagadas. Aceite a dor. É a única maneira de manter sua filha com você.”

Terra Selvagem (Wind River) – EUA, 2017, cor, 111 minutos.
Direção: Taylor Sheridan. Roteiro: Taylor Sheridan. Música: Nick Cave e Warren Ellis. Cinematografia: Ben Richardson. Edição: Gary D. Roach. Elenco: Jeremy Renner, Elizabeth Olsen, Gil Birmingham, Jon Bernthal, Julia Jones, Kelsey Chow, Graham Greene, Martin Sensmeier.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.