– Ei, você sabia que quando os gnus migram, eles caminham até mil quilômetros? Isso é muito? – Ricky Baker.
– Sim, um montão. – Hector Faulkner.
– Assim como nós. Andando, andando, tentando chegar a algum lugar. Procurando por uma casa melhor. – Ricky Baker.

– Você acha que já andamos mil quilômetros? Como os gnus? – Ricky Baker.
– Bem, parece que sim, né? – Hector Faulkner.
– Sim, sempre em movimento, sempre atento aos caçadores. Assim como os gnus, mas humanos. Nós somos… “gnumanos”. Sim, a gente é isso. – Ricky Baker.

Os dois diálogos transcritos acima, que explicam o “Wilderpeople” do título original (Hunt for the Wilderpeople, algo como A Caçada pelos “gnumanos” ou “A Caçada pelos homens gnus) do quarto longa-metragem de Taika Waititi, ocorrem em diferentes momentos da película, mas ambos terminam com Ricky Baker (Julian Dennison) e Hector Faulkner (Sam Neil) encontrando um grupo de caçadores que faz de tudo para capturá-los – como se eles realmente fossem animais em fuga procurando por um lugar melhor. Essa narrativa clássica de uma dupla supostamente incompatível entre si (até se conhecerem corretamente durante a jornada), renegados, foras da lei, lutando contra o sistema, vivendo à margem, em uma missão pessoal pela verdadeira liberdade – não nominada, mas sentida –, é o coração de Fuga para a Liberdade.

Ricky Baker é um indesejado órfão com sobrepeso, um delinquente juvenil, auto-denominado “gangsta”, ou nas palavras “doces” de Paula (Rachel House), a excêntrica oficial do Departamento de Bem-estar Infantil cujo lema é “nenhuma criança deixada para trás”, um garoto capaz de “desobedecer, roubar, cuspir, quebrar, fugir, chutar, xingar, desfigurar, queimar coisas, vadiar e pichar” – e uma excelente sequência, com montagem dinâmica e acelerada, mostra toda essa revolta do adolescente pelas ruas das cidades, sendo isso “apenas o que nós conhecemos“. Aos treze anos de idade, Ricky tem provavelmente a sua última chance de tornar-se parte de uma família quando é levado para viver na remota fazenda dos Faulkner (Tio Hec e Tia Bella).

Bella Faulkner (Rima Te Wiata) é uma mulher amorosa, disposta a dar todo o amor do mundo a Ricky, enquanto Hector Faulkner é um homem de fronteira, bruto e rústico, que aparenta não ter a menor paciência para o novo membro da família. A casca defensiva de Ricky é prontamente rompida por Bella, sem que muitas palavras se façam necessárias – a doçura da cena em que Ricky segura com afeto uma bolsa de água quente que Bella lhe preparou já diz tudo. Os dois saem juntos para caçar, e Ricky ganha dois presentes em seu aniversário de 13 anos: um cachorro, a quem batiza de Tupac em homenagem a seu ídolo rapper, e uma canção absurdamente sensacional composta por Bella (“Você é um adolescente e você é tão bom quanto ouro! Ricky Baker, ah! Ricky Baker! Ah, ah!“).

Quando Bella falece repentinamente, torna-se questão de tempo para que o garoto retorne às mãos do poder público – e ele sabe que isso seria o seu fim. Ricky foge da casa e perde-se na mata, fazendo com que Hec vá atrás dele e acabe machucando a perna. Obrigados a passar semanas no meio da floresta, acompanhados dos cães Zag e Tupac, logo os dois descobrirão que são as pessoas mais famosas e procuradas da Nova Zelândia e que uma caçada nacional envolvendo o Departamento de Bem-estar Infantil, a polícia, o exército, esquadrões de elite, caçadores profissionais, tanques de guerra e helicópteros foi empreendida para capturá-los. Enquanto boa parte da população os considera verdadeiros heróis, as autoridades acreditam que Hec sequestrou Ricky, e levantam suspeitas até mesmo de abuso sexual da sua parte.

Baseado no livro Wild Pork and Watercress, de Barry Crump, o roteiro de Fuga para a Liberdade foi escrito pelo próprio Taika Waititi. A história tem seus contornos familiares e clássicos: o garoto buscando aceitação, apenas para vê-la ruir com extrema velocidade quando a encontra, e a dupla improvável, que não se entende, até que aos poucos estabelece uma relação íntima. A narrativa é sagaz em escapar dos clichês e não deixar-se vencer pelo sentimentalismo barato. A capacidade de Waititi para criar diálogos incríveis é simplesmente ímpar – e aqui ele entrega o seu melhor trabalho. Logo na primeira noite, Ricky foge do lugar, munido de lanterna e suprimentos, e é encontrado por Bella na manhã seguinte, dormindo a míseros 200 metros de distância da casa, em uma sequência hilária. Complementada pelas palavras doces da amorosa mulher: “Vamos. Tome um café da manhã… ovos, bacon, salsichas, panquecas… aí você pode fugir.” O neozelandês desenvolve a humanidade e os sentimentos dos personagens com habilidade (“Você vai fugir esta noite? Por mim tudo bem… Apenas certifique-se de que estará de volta para o café da manhã.“), ao mesmo tempo em que derrama graça sobre todas as coisas (“Você está com fome? Essa é uma pergunta boba, não é? Olhe para você.“).

Taika Waititi possui um senso de humor exuberante e um talento inventivo para o absurdo. O estilo de humor neozelandês pode causar estranheza no início, mas é absolutamente genial. Estamos diante da “comédia do mundano”, na definição do próprio diretor. O humor em Fuga para a Liberdade é tanto silencioso e realista, especialmente na figura do seu protagonista, que é engraçado por natureza, nas perguntas que faz, nos haikus que inventa, na inocência e nas expressões que assume, como geralmente as crianças são, sem artificialismos, quanto cartunesco e exagerado, especialmente nas figuras de personagens como Paula e Psycho Sam (Rhys Darby), sempre realçado pelo timing preciso dos seus atores e pelo incômodo proposital da câmera do diretor, que permanece fechada em um mesmo plano por segundos extras enquanto o efeito cômico do diálogo ou da situação é percebido pelo espectador. É um humor inesperado, que deixa um sorriso no canto da boca durante toda a projeção, tornando ainda mais prazerosa a experiência de acompanhar os contornos dramáticos que a aventura de Ricky e Hec vai adquirindo.

Esse mundo incrivelmente cômico poderia perder-se na caricatura, mas isso não acontece. Se temos aqui uma cobertura cômica de contornos nonsenses permeando a narrativa, ao mesmo tempo o interior da história é recheado de uma dramaticidade evidente, com uma atmosfera trágica e um sentimento de humanidade e delicadeza constantes. E para além do roteiro, o primoroso elenco contribui muito para isso. O experiente ator neozelandês Sam Neil (Jurassic Park, O Piano, O Enigma do Horizonte) está perfeito como um personagem silencioso e hostil (que já surge em cena impressionando Ricky, caminhando ao longe trazendo um enorme porco morto nas costas), mas é o jovem Julian Dennison que rouba a cena em uma atuação memorável, e conquista o espectador desde o momento em que aparece pela primeira vez na tela. Mas não há um ator, por menor que seja a sua participação, que não se destaque em seu papel: da exagerada e obcecada Paula de Rachel House (que ao lado de Ricky é a responsável pelas melhores referências pops do filme: “Você parece mais a Sarah Connor. Antes de ela conseguir fazer flexões.”), passando pela amorosa Bella de Rima Te Wiata e pelo paranoico Pyscho Sam do comediante Rhys Darby até chegar na bizarra – e hilária – participação do próprio Taika Waititi como um padre, todos eles possuem momentos incrivelmente geniais.

A fotografia de Lachlan Milne é deslumbrante e encantadora. Fuga para a Liberdade passeia pelas idílicas e intocadas paisagens naturais da Nova Zelândia, desvendando-as através de extraordinárias tomadas aéreas – que são exploradas já desde o começo, quando adentram com maestria a isolada região habitada pelos Faulkner. Taika Waititi prova-se um diretor talentoso, aplicando transições de cenas pouco comuns, posicionando os elementos com clareza e encontrando enquadramentos interessantes – usando e abusando da simetria e quase sempre inserindo Ricky e Hec no cenário a partir de pontos opostos –, que terminam por entregar tomadas de incrível beleza. Seus planos abertos situam o espectador na vastidão daquela região, especialmente a partir do contraste de uma criança diante daquilo tudo, e seus closes certeiros capturam as reações, dramáticas e cômicas, dos atores. Além de tudo, outro recurso bastante utilizado pelo diretor é a mesclagem de cenas, que encontra seu ápice quase no final, quando uma extraordinária montagem panorâmica de mais de oitenta segundos de duração mistura aproximadamente dez cenas diferentes relacionadas à perseguição contra Ricky e Hec, interligando-as através de elementos da floresta durante uma nevasca, enquanto os personagens parecem entrar e sair organicamente por entre elas.

A trilha sonora é inusitada, misturando os temas originais dos compositores Lukasz Buda, Samuel Scott e Conrad Wedde, canções de Nina Simone e Leonard Cohen, músicas dos artistas neozelandeses Dave Dobby e DD Smash e do sueco Moniker, entre outros, abrindo espaço até mesmo para uma canção de Bob Marley cantada e tocada ao violão por um dos personagens durante uma cena – e o filme já começa com um fantástico canto coral, o Shchedryk, peça sacra composta pelo sacerdote ucraniano M. Leontovych, que celebra o Ano Novo (a vida nova), enquanto a câmera do diretor vem do alto, diretamente do topo das incríveis montanhas neozelandesas, até alcançar a estrada e o carro que leva Ricky até a casa dos Faulkner, para o seu novo, e derradeiro, começo.

Essencialmente uma aventura dramática e cômica, com um espírito de filmes oitentistas como Os Gonnies e Conta Comigo, Fuga para a Liberdade também flerta com vários outros gêneros em determinadas sequências – e consegue sucesso na empreitada. Uma caçada a um porco logo nos primeiros quinze minutos da obra é de um grafismo impressionante. Bella esfaqueia o animal no meio da mata, na frente de Ricky, olhos esbugalhados, prestes a desmaiar, em uma montagem rápida que remete diretamente a Psicose e que termina com Bella limpando a mão ensanguentada no rosto, com um sorriso de satisfação pelo jantar conquistado, ao melhor estilo “terrir” de obras como A Morte do Demônio. Ainda há espaço para uma bem coreografada e tensa sequência de ação com um javali gigante no meio da floresta, e uma perseguição de carro por entre as pradarias da Nova Zelândia que remete diretamente a Thelma e Louise.

Em um determinado momento, Ricky e Hec escondem-se embaixo das raízes de umas árvores, enquanto um esquadrão de elite procura-os acima. Ricky gesticula freneticamente para Hec, que não entende o que o garoto quer dizer. Quando o perigo cessa, Ricky exclama: “Eu estava tentando te dizer que parecia O Senhor dos Anéis!” – em uma referência à cena de A Sociedade do Anel, quando os quatro hobbits escondem-se do Nazgul, no caminho para Bri. E as referências não cessam em Tolkien. De Scarface a O Exterminador do Futuro, passando por Rambo e Crocodilo Dundee, há de tudo um pouco no caldeirão pop de referências do filme.

No fim de tudo, aspectos técnicos à parte, Fuga para a Liberdade é um filme divertidíssimo, com alma viva e coração pulsante. Uma deliciosa aventura dramática e cômica, com personagens cativantes, diálogos afiados e uma atmosfera charmosa. O aprendizado que Ricky e Hec adquirem um com o outro é universal, e o sentimento de pertença que o desajeitado adolescente conquista para si é verdadeiro e sincero: mais do que o lugar em si, aquelas pessoas (Bella, mesmo que por um breve tempo, e Hec) são a sua família. A convivência é o seu verdadeiro lar. Quando a incrível aventura dos dois terminar, pode ter certeza de uma coisa: você irá querer uma selfie com Ricky Baker, mesmo ela sendo tirada por outra pessoa – veja o filme e você entenderá.

Fuga para a Liberdade (Hunt for the Wilderpeople) – Nova Zelândia, 2016, cor, 101 minutos.
Direção: Taika Waititi. Roteiro: Taika Waititi. Fotografia: Lachlan Milne. Música: Lukasz Buda, Samuel Scott, Conrad Wedde. Edição: Luke Haigh, Tom Eagles e Yana Gorskaya. Elenco: Sam Neil, Julian Dennison, Rima Te Wiata, Rhys Darby, Rachel House, Oscar Kightley, Tioreore Ngatai-Melbourne, Taika Waititi.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.