O Homem-Aranha surgiu nos quadrinhos em agosto de 1962, nas páginas de Amazing Fantasy #15, última edição da revista de antologias que estava sendo cancelada por causa do baixo número de vendas. O sucesso do personagem criado por Stan Lee e Steve Ditko foi inesperado e deu origem a uma série solo (The Amazing Spider-Man) em março de 1963, que em pouco tempo se transformou na revista mais vendida da Marvel Comics. O impacto do Amigão da Vizinhança no universo dos quadrinhos foi imediato e duradouro, e o fenômeno aracnídeo não demorou a lançar suas teias para outras mídias. Apesar disso, o seu movimento em direção ao cinema demorou muito tempo a ser realizado – embora fosse uma ideia acalentada por Lee desde o início da década de 1970 –, tanto por imbróglios contratuais e trocas de direitos entre estúdios que se sucederam desde o final da década de 1980, quanto por uma tecnologia de tempos passados que se mostrava insuficiente para se transpôr adequadamente às telonas um personagem tão ágil e acrobático.

A primeira adaptação cinematográfica do Cabeça de Teia só aconteceu em 2002, através da Sony Pictures, mas revolucionou a indústria e marcou uma nova era para os filmes de super-heróis. Homem-Aranha foi o primeiro filme da história a ultrapassar a barreira dos US$ 100 milhões em uma única semana na bilheteria norte-americana, tornando-se a maior abertura de um filme até então e estabelecendo um novo patamar a ser cobiçado pelos blockbusters. Duas sequências vieram em 2004 e 2007 e mantiveram o êxito comercial do filme de 2002. Um reboot foi iniciado em 2012, recebendo uma sequência em 2014, mas o resultado não foi dos melhores para a Sony, que engavetou a conclusão da trilogia. E então o inesperado aconteceu.

No final de 2014, um ataque hacker vazou informações sigilosas e trocas de e-mails da alta cúpula da empresa. No meio dos dados, conversas sobre algo que até aquele momento não passava de imaginação excessiva dos fãs: um acordo inédito entre os estúdios que permitiria ao Homem-Aranha integrar o mesmo universo dos filmes da Marvel Studios. O anúncio oficial foi feito em 2015, causando euforia entre o público e o personagem fez a sua esperada estreia em Capitão América: Guerra Civil (2016). Agora, em julho de 2017, acaba de estrear o seu novo filme solo, sendo parte integrante do Universo Cinematográfico da Marvel.

Um prólogo ambientado logo após a Batalha de Nova York, ocorrida em Os Vingadores (2012), introduz Adrian Tommes (Michael Keaton) e seus contratados. O futuro Abutre investiu tudo que tinha em uma empreteira que se dedica a recolher os escombros nos arredores de Manhattan. Uma parceria entre as Indústrias Stark e o governo federal estabelece a criação do Departamento de Controle de Danos, que dispensa a empresa de Tommes do negócio, condenando o empreiteiro à falência. Diante do fracasso daquele que seria o negócio de sua vida, um enfurecido Tommes resolve trilhar o caminho do crime, reinventando-se como um traficante de armas construídas com restos de tecnologia chitauri.

Homem-Aranha: De Volta ao Lar se beneficia – e muito – com a decisão de não reprisar a famosa origem do Homem-Aranha. Um vídeo gravado pelo próprio Peter Parker (Tom Holland) narra a sua trajetória com Happy Hogan (Jon Favreau) na viagem até a batalha do aeroporto de Capitão América: Guerra Civil (2016) e em poucos minutos já estamos no Queens, acompanhando um adolescente e efervescente Cabeça de Teia impedindo o roubo de uma bicicleta, auxiliando uma senhora dominicana que está perdida – recebendo um churro como agradecimento – e tomando conta da sua vizinhança, fazendo valer um dos seus mais célebres epítetos – o Amigão da Vizinhança é o super-herói que vai salvar o bairro, não o mundo.

Peter Parker acredita ser o mais novo membro dos Vingadores, mas se decepciona constantemente com a insistência de Tony Stark (Robert Downey Jr.) em mantê-lo distante das grandes ações, insatisfeito por ser tratado como uma criança, preso a uma espécie de “estágio super-heroico” onde combate apenas ameaças pequenas. Enquanto espera por eventos grandiosos, e por uma ligação de Tony que nunca acontece, Parker precisa conciliar a vida de super-herói com os dilemas típicos da vida colegial – e justamente no núcleo escolar reside o coração do filme. Esse período da vida de Parker foi longamente explorado nos primeiros anos do personagem nos quadrinhos, mas negligenciado nos filmes anteriores, que passaram rapidamente por essa fase. Não dessa vez. O ritmo episódico do filme vai fundo nesse elemento. É no colégio que Parker passa a maior parte do seu tempo, nos laboratórios da escola ele produz os estoques do seu fluido de teia e o seu gênio científico é notado a todo momento.

A presença de um vilão voador auxilia na construção de composições que continuamente colocam o Homem-Aranha em ambientes que exigem o máximo de sua criatividade. Desaparece a Nova York romântica e clássica, com seus infinitos arranha-céus, por onde o Teioso se balança para lá e para cá sempre encontrando uma parede ou uma beirada para grudar sua teia. Aparece o Queens suburbano, com suas casas residenciais, onde o Aracnídeo atira sua teia no vácuo e precisa sair correndo pelas ruas atrás de criminosos, pulando de quintal em quintal, em desabalada carreira. Surgem as locações altas, com sequências vertiginosas de combate e salvamento acontecendo no topo do Monumento de Washington e em um avião de carga nos céus da cidade, acima das nuvens. A todo instante o Homem-Aranha precisa usar o próprio vilão como elemento para os seus ataques e defesas.

Com suas raízes fincadas na classe trabalhadora, o Abutre de Michael Keaton é o grande destaque de Homem-Aranha: De Volta ao Lar. Sua revolta é compreensível e sua frustração termina por jogá-lo no mundo do crime, mas sem cair na caricatura. O roteiro não constrói um vilão que pratica a vilania por gostar dela, mas sim a jornada de um homem comum, que escolhe trilhar um caminho no submundo do tráfico de armas por acreditar ser a única maneira que lhe restou de manter o bem estar de sua família depois de perder tudo. O experiente – e excelente – Keaton insere camadas e mais camadas sobre o seu Adrian Tommes, construindo um dos melhores vilões dos filmes da Marvel Studios e do gênero nos últimos anos.

O Abutre não quer dominar o mundo: quer ganhar dinheiro na surdina e sustentar a sua família. E um moleque intrometido vestindo um collant azul e vermelho surge no meio do caminho para atrapalhar os seus planos. Michael Keaton soa ameaçador quando necessário (e o faz muitas vezes) e transpira raiva pura quando seus negócios são atrapalhados pelo incauto Aracnídeo. A câmera de Jon Watts destaca suas expressões faciais através dos close-ups, e uma extraordinária sequência entre Keaton e Tom Holland define o Abutre: humano, ameaçador e surpreendentemente capaz de reconhecer os feitos de um adversário.

O inexperiente Jon Watts acaba não conseguindo extrair o melhor das cenas de combate, filmando com muitos cortes e planos confusos, mas cria alguns trechos memoráveis, em particular a sequência de salvamento na capital dos EUA. O humor característico do Homem-Aranha é explorado com talento, tanto nos diálogos quanto nas situações. O traje tecnológico repleto de gadgets que conversa com o seu dono mais atrapalha do que auxilia, e as duas centenas de funcionalidades confundem Peter Parker o tempo inteiro, gerando sequências hilárias – no fim das contas, será sem o novo uniforme, com a roupa caseira e o disparador de teias próprio, que o Homem-Aranha irá provar a sua capacidade.

Ned (Jacob Batalon), o “cara das cadeiras”, é o alívio cômico perfeito da narrativa, servindo como uma espécie de espectador dentro da história, fascinado por descobrir que o seu melhor amigo é o Homem-Aranha e estabelecendo uma química absurda com Tom Holland, que entrega uma personificação certeira do Amigão da Vizinhança. O ator de 21 anos convence como um adolescente de 15 que mal consegue falar com Liz Allen (Laura Harrier), por quem é apaixonado “secretamente”, que precisa esconder a vida dupla de sua tia May (Marisa Tomei) e que enfrenta as provocações intermináveis de Flash Thompson (Tony Revolori), ao mesmo tempo em que se transforma em um tagarela provocativo e mordaz quando veste o seu traje e enfrenta os bandidos.

Sempre forçado a escolher entre um momento com a sua amada – na piscina, em uma festa ou em um baile – ou a fazer o que um super-herói faz – perseguir um suspeito, ir atrás de criminosos ou seguir uma pista –, as suas escolhas são óbvias. É heroísmo que transpira por todos os poros do personagem desde que foi picado por aquela aranha radioativa. A necessidade de combater o crime ao mesmo tempo em que precisa participar de uma competição estudantil, encontrar seus amigos ou sair com a garota que ama é um dos elementos que fizeram o personagem ser um dos mais amados do planeta. E Homem-Aranha: De Volta ao Lar acerta em cheio na transposição dessa rotina insana que termina sempre acabando com as suas pretensões pessoais.

Homem-Aranha: De Volta ao Lar é repleto de energia e humor. Uma narrativa calcada em um espírito adolescente que não perde de vista a essência do Homem-Aranha e atualiza os elementos intercambiáveis e periféricos do seu universo para uma nova geração – alterações em etnias de coadjuvantes, mescla de características de fases distintas e tecnologia mais avançada, entre outros. Vemos um super-herói em formação que comete muitos erros por causa da sua impulsividade juvenil, às vezes é derrotado com facilidade (como foi nas primeiras vezes em que enfrentou Abutre, Doutor Octopus e outros vilões clássicos nas HQs), mas que nunca desiste, sempre se levanta (e no terço final há uma homenagem extraordinária a um dos quadros mais famosos desenhados pelo mestre Steve Ditko) e segue adiante, sem se importar com o que acontecerá consigo mesmo, porque ele é um super-herói, e o seu heroísmo sempre coloca o outro em primeiro lugar. A sensação que temos ao assistir Homem-Aranha: De Volta ao Lar é a de ler uma edição do mês da revista do mais famoso Aracnídeo do planeta. E isso é muito, muito bom.

Homem-Aranha: De Volta ao Lar (Spider-Man: Homecoming) – EUA, 2017, cor, 133 minutos.
Direção: Jon Watts. Roteiro: Jonathan M. Goldstein, John Francis Daley, Jon Watts, Christopher Ford, Chris McKenna e Erik Sommers. Música: Michael Giacchino. Cinematografia: Salvatore Totino. Edição: Dan Lebental e Debbie Berman. Elenco: Tom Holland, Michael Keaton, Marisa Tomei, Robert Downey Jr., Jacob Batalon, Zendaya, Laura Harrier, Tony Revolori, Bokeem Woodbine, Donald Glover, Phineas Mason, Logan-Marshall-Green, Michael Mando, Kenneth Choi e Jon Favreau.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.