Vocês já leram o Homem-Animal do Grant Morrison? Provavelmente não. Essa é uma das resenhas que eu mais esperei fazer, pois se trata de uma das fases mais sensacionais da história dos quadrinhos. Homem-Animal: O Evangelho do Coiote é o primeiro arco do escritor escocês à frente do título do personagem, seguido por Origem das Espécies e Deus Ex-Machina. Morrison, durante 26 edições, construiu e desconstruiu, não só a persona de seu personagem, mas também o universo em volta dele. A série incorpora temas filosóficos, existenciais e metalinguísticos, que em sua conclusão, é capaz de impressionar todo tipo de leitor.

Existem muitas pessoas que não gostam do Grant Morrison, e alegam que o escritor não possui a mínima genialidade. Eu não poderia discordar mais. Ele já fez histórias ruins? Sim, como a deplorável Crise Final; porém foi o autor de grandes histórias, como Grandes Astros Superman, Asilo Arkham, e a novíssima Multiversidade, entre outras. Aqui, Morrison mostra o quão competente é, escrevendo uma obra de arte, tendo como protagonista um personagem totalmente “ridículo”. Como já dizia Alan Moore, “Não existem personagens ruins, existem escritores ruins; assim como não existem personagens bons, existem escritores bons”.

No final dos anos 80, após o estrondoso sucesso de O Monstro do PântanoV de Vingança e Watchmen, de Alan Moore, a editora chefe da linha Vertigo (o selo adulto da DC Comics), foi até a Inglaterra em busca de novos talentos, a fim de que esses profissionais trabalhassem em seu selo editorial. Conclusão, a editora voltou de lá com contratos assinados por Grant Morrison, Jamie Delano, Alan Grant, John Wagner, Neil GaimanDave McKean, dando origem à famosa “invasão britânica” nos quadrinhos. Daí saíram, além do Homem-Animal, outras grandes obras da nona arte, como Sandman, Hellblazer: Origens, o já citado Asilo Arkham, etc.

Após uma das maiores histórias de todos os tempos da DC Comics, Crise Nas Infinitas Terras, que foi responsável pelo primeiro grande reboot editorial, grandes artistas como Frank Miller, John Byrne, George Pérez, dentre outros, ficaram responsáveis pelos grandes personagens da editora, como Batman, Superman, Mulher-Maravilha, etc. Porém, o recém chegado Morrison fez uma escolha ousada. O escocês quis ficar a frente do Homem-Animal, um personagem da “classe D” da DC Comics.

Buddy Baker, o Homem-Animal, é um super herói incomum. Ele não possui identidade secreta, é casado e tem dois filhos. Possui o clássico ímpeto de alguns heróis de quererem fama e reconhecimento, participando de programas de TV, e passando muita vergonha às vezes. É possível fazer uma boa história de um personagem que tem poderes de absorver características de animais ao seu redor, e que quase ninguém conhece? Sim, é possível fazer uma excelente história com isso. Os primeiros quatro volumes começam calmos, e sem muitas surpresas. Morrison reapresenta o personagem ao público, e estabelece algumas bases (que serão usadas até o final da fase). Buddy primeiramente enfrenta o Fera B’wana, um cara africano que vai até os Estados Unidos atrás de sua querida e adorável macaca. Em quatro volumes, Morrison finaliza a primeira história, e a partir do quinto volume começa a arriscar em tramas malucas e mirabolantes, que nem ele botava muita fé, mas que acabaram fazendo história.

O Evangelho Segundo o Coiote

Tudo começou aqui. O quinto volume, que dá nome ao primeiro arco, mostra a maluca história de um coiote que se rebelou contra seu criador (Deus, vulgo O Artista). Estabelecendo desde já a conflituosa relação entre criatura e criador, Morrison, inspirado no coiote do famoso desenho do Papaléguas, de um dos maiores animadores de todos os tempos, Chuck Jones, constrói uma trama totalmente baseada na metalinguagem. Na história, que praticamente se sustenta sozinha, o Homem-Animal é um mero espectador.

Confrontando seu Deus, o Coiote diz que sua realidade (antropomórfica – o mundo dos desenhos animados onde vive) é cruel e que não vive em paz há tempos, fazendo analogias à onda de perseguições dos personagens cartunescos (como Tom & Jerry e o próprio Papaléguas) estabelecida nos desenhos desde os anos 40. O Coiote está cansado de ver caos em tudo que o rodeia, então pede a seu Deus para que conserte seu mundo. Deus, em um ato contestável, pergunta ao Coiote se ele faria qualquer coisa para que seu desejo fosse atendido, e ele diz que sim. O personagem então é mandado para fora de seu mundo, indo parar na realidade daquela história em quadrinhos (ou o universo da DC Comics) que os leitores estão habituados. O Coiote, desde então, estará fadado a viver para sempre, sendo imortal, em um mundo mais cruel ainda. O problema é que nunca saberemos se seu desejo foi mesmo atendido por Deus.

Na trama, o modo mais fácil de entender as atitudes do Coiote seria traçando um paralelo com Jesus Cristo, que segundo a bíblia, em seu mais puro sentimento de altruísmo, decide se sacrificar em prol da humanidade. Em que base eu afirmo uma coisa dessas? Há referências à religião em todo lugar. Desde a capa até a página final, mostrando uma representação de crucificação, passando pela presença de Deus, crucifixos aparecendo e sendo importantes para a conclusão da história, as várias citações ao demônio, e o milagre da ressurreição vindo do Coiote. O quadrinho termina mostrando a interferência do Criador, desenhando o triste final que o Coiote teria. Aqui, Grant Morrison desconstrói algo que já havia sido desconstruído: os desenhos animados.

“O mundo azul rodopia sobre mim, frágil como vidro, um vasto e delicado ornamento. Criação nua, crepitando e jorrando em todas as direções. Nuvens não são esferas. Montanhas não são cones. Relâmpagos não caminham em linha reta. Estas coisas são abstrações da realidade. A geometria da natureza, como a geometria da própria vida, contém infinitos.”

Porém, nem só de uma história vive esse primeiro arco. Dando seguimento ao triste conto do Coiote, temos a participação de personagens Thanagarianos, onde um deles entra na clássica filosofia de relação entre pais e filhos. O futuro da humanidade dependeria dos aprendizados e desejos de um garoto de Thanagar que se espelha e segue os conselhos de seu antigo educador, seu pai. Em seguida temos uma história envolvendo o temido Máscara Rubra, um personagem que se denomina um super vilão, e passa por crises existenciais, pensando constantemente em suicídio. Também temos a oportunidade de ter uma edição onde o Homem-Animal enfrenta o Mestre dos Espelhos, onde algumas coisas que serão desenvolvidas ao final da fase são estabelecidas. Como podem ver, uma simples história em quadrinhos pode agregar muitos questionamentos e levantamentos importantes. Sem falar nas várias críticas que o Morrison introduz à sociedade, abordando temas como os maus tratos aos animais e o vegetarianismo.

Na trama, ainda temos a oportunidade de conferir participações de dois grandes personagens do universo DC, o Superman e o Caçador de Marte. Homem-Animal: O Evangelho do Coiote compila as edições de #1 a #9 dos títulos pós-Crise do personagem.

A Origem das Espécies

Dando prosseguimento às histórias de sua incrível fase à frente do personagem, Grant Morrison começa a responder algumas perguntas que deixou em aberto no primeiro arco, além de introduzir e desenvolver outros conceitos que farão sentido ao final de toda a fase. Sendo uma continuação de Homem-Animal: O Evangelho do Coiote, este segundo volume compila as edições de #10 a #17 do título pós-Crise do personagem.

Homem-Animal: Origem das Espécies começou a levantar algumas dúvidas e questionamentos dos leitores sobre o real intuito de Morrison sobre o personagem. Muitos acusam o escocês de usar Buddy Baker como uma “ponte” para a transmissão de suas ideologias. Porém, seria errôneo da parte de qualquer um deixar que isso atrapalhe sua experiência de leitura. Dessa vez, temos o Homem-Animal cada vez mais convivendo com alguns dilemas que permeiam os quadrinhos, o mundo fictício onde se passam essas histórias. Já nas primeiras edições, temos um pequeno vislumbre do que viria a acontecer no final da fase (demonstrando um incrível planejamento por parte do roteirista), quando um dos personagens é completamente apagado por simplesmente ser irritante demais, e não ter sentido dentro da proposta daquela história.

O nome desse segundo arco, que é obviamente baseado no mais famoso livro sobre a teoria da evolução, de Charles Darwin, não possui uma edição inteira só para ele, como foi o caso de O Evangelho do Coiote. O conceito que Morrison aborda aqui, e referencia com A Origem das Espécies, é brevemente pincelado. Houve um tempo onde o ser humano não era tão desenvolvido como é hoje. Sua evolução passou por longas etapas, e precisou de anos para acontecer (e ainda está acontecendo). Será que os super heróis estão em um estágio acima na evolução humana? Segundo o próprio Darwin, a Seleção Natural é o meio principal, mas não exclusivo, da modificação de um ser.

“É engraçado. Muitos dizem que os super heróis estão em um estágio acima na evolução humana. Mas sempre que nós nos encontramos, é para lutar uns com os outros. Isso não me parece muito brilhante (e muito menos atitude de seres mais evoluídos).” – Homem-Animal.

Diferente do primeiro arco, esse segundo finalmente conta a origem do protagonista da história. Conduzindo sua narrativa por um caminho não-linear, Morrison revela que Buddy Baker conseguiu seus incríveis poderes devido a um foguete alienígena que caiu na Terra. O foguete explodiu na cara de Buddy, dando a ele, inexplicavelmente, suas novas habilidades. Porém, uma revelação nos é contada, quando o Homem-Animal começa a sentir algumas dificuldades em usar seus poderes. Buddy não está conseguindo mais acessar suas habilidades com eficiência, conseguindo, às vezes, absorver as características de animais não desejados. Eis então que os alienígenas, donos daquele foguete que caiu na Terra, aparecem. Os seres vindos de outro planeta, diferente do que pensamos, não apareceram para tentar destruir Buddy, e sim para ajudá-lo. Morrison coloca aqui mais pistas do que pretende fazer ao final da fase…

“A grande luz que você vê é uma manifestação da vasta ausência que se encontra além do que chama de realidade! Daquela luz, se desfralda o processo contínuo de criação e destruição.” 

A história tem prosseguimento, e mais críticas à sociedade, introduzidas pelo roteirista, começam a aparecer. Dessa vez, além da insistência em tentar convencer as pessoas do vegetarianismo, Morrison levanta algumas questões incrivelmente interessantes, e sérias: o tráfico ecológico e suas consequências, e a pesca ilegal. Duas edições abordam esse tema com maestria, mostrando ao leitor o quão cruel o ser humano pode ser, enquanto os animais continuam a ter uma aura de inocência, e uma personalidade piedosa em muitos os casos. Também temos outras abordagens pesadas, como o levantamento da questão do racismo, mostrando passagens na África que sintetizam (claro, em escalas totalmente menores) um pouco o Apartheid, mostrando brevemente algumas das consequências do regime de segregação racial adotado em um dos países do continente, a África do Sul.

Além de tudo isso, ainda podemos conferir a volta de um importante personagem do primeiro arco, o Fera B’wana, hoje amigo de Buddy Baker; e a introdução de novas personagens na história, porém já conhecidas do universo da DC Comics, Vixen e Delfim (que mais tarde viria a ser uma das personagens mais marcantes da fase do Peter David à frente do Aquaman, em meados dos anos 90). Possuímos vários momentos marcantes nesse segundo arco, como a absorção de características de uma célula pelo Homem-Animal, fazendo com que ele se multiplique; a luta entre Buddy e um Tiranossauro-Rex em Paris (lê-se “muita droga na corrente sanguínea de Grant Morrison…” rsrs); e as pequenas participações do Pirata Psíquico e do Mestre dos Espelhos, que terão papel fundamental no terceiro arco, considerado por mim como uma das maiores obras primas da nova arte.

Deus Ex-Machina

Primeiramente, esqueça absolutamente tudo que você sabe, conhece, ou pensa sobre quadrinhos. Tudo. Homem-Animal: Deus Ex-Machina, que compila as edições de #18 a #26 do título pós-Crise do personagem, é algo completamente novo, genial, e único no mundo das histórias de super heróis. A continuação de O Evangelho do Coiote e Origem das Espécies finaliza com chave de ouro a passagem do escocês Grant Morrison pelo título do personagem. O autor é conhecido por ter ideias mirabolantes, quase sempre malucas e complexas, então podemos dizer que esse título é um dos ápices de toda a sua carreira (embora ela tivesse recentemente começado na época).

Bem, não sei se fui capaz de te deixar animado para ler essas histórias até aqui, mas gostaria de deixar bem claro que é de suma importância ter lido os dois títulos anteriores para obter uma compreensão máxima da obra. Tudo é muito bem amarradinho, e faz total sentido no final. Acho que o sentimento que fica ao final dessa fase do Morrison é de pegar todas as 26 edições que ele escreveu e reler tudo de uma vez, para poder pegar todas as pistas que ele foi deixando, desde as primeiras histórias, e ver o quanto fomos inocentes de não termos suspeitado o que o autor queria fazer desde o início.

“Eu não posso acreditar que Deus jogue dados com o cosmo.” – Albert Einstein.

“Ele não joga, eu, sim.” – O personagem misterioso (e principal “vilão” de toda a fase – que, obviamente, não irei revelar).

“Deus Ex-Machina” é um recurso antigo, utilizado em várias obras da literatura, teatro, cinema e televisão. Mas o que exatamente significa isso? Essa é uma expressão grega que significa, mais ou menos, “Deus surgido da máquina”, e se refere à uma solução inesperada, surpreendente e até um pouco improvável. No teatro grego, às vezes acontecia algo com um personagem, um problema que ele acabava se metendo, que não teria solução, então eles simplesmente colocavam dentro de uma máquina algum personagem-chave, um Deus, que magicamente resolveria o problema desse outro personagem. Pode parecer clichê, e você ter a impressão de ter visto isso em diversas outras obras, porém aqui esse artificio é usado de forma magistral.

“O último inimigo a ser destruído é a morte.” – Coríntios 15:26.

Morrison não tem a mínima dó de levar o personagem ao seu extremo emocional, provocando algumas brutalidades nesse caminho. Mortes de personagens queridos, uma imensa viagem psicodélica (característica de algumas obras do autor) e revelações surpreendentes são alguns dos pontos altos desse volume. Outras grandes passagens, como a aparição de personagens clássicos, como o Pirata Psíquico (que é a única figura humana que se lembra dos acontecimentos pré-Crise Nas Infinitas Terras), Mestre dos Espelhos, Sindicato do Crime, entre outros, ajudam a compor toda a linha narrativa, que faz até uma brincadeira muito legal com o ramo das histórias em quadrinhos.

Outra coisa genial que nos é mostrada, é o chamado “limbo dos quadrinhos”, um lugar sombrio para onde vão os personagens que não são mais utilizados. Essa é uma das passagens mais tristes e incríveis dessa edição. Além disso, temos a oportunidade de acompanhar uma incrível viagem no tempo, que teve pistas deixadas no segundo volume da fase. Terminado magistralmente sua passagem à frente do Homem-Animal, o escocês volta a utilizar a conflituosa relação entre criatura e criador, já vista na história do Coiote, no primeiro volume da série.

Como de costume, Morrison novamente utiliza do quadrinho para fazer algumas críticas e falar sobre temáticas importantes, que dessa vez abrangem claramente o descontrole emocional e a depressão. Um trágico acontecimento na vida de Buddy Baker o faz virar um consumidor desenfreado de remédios (que, por mais que não seja explícito, o leitor interpreta como sendo anti-depressivos). Um dos maiores méritos de Homem-Animal é mostrar a humanidade de um super herói, sem compromisso com o panteão de divindades que se resumem muitos dos outros personagens da DC Comics. Nós sofremos, ficamos preocupados, nos importamos, e realmente sentimos medo por ele. Nós formamos uma ligação tão forte que, quando alguns acontecimentos pontuais ocorrem, sentimos uma interação incrivelmente real com o personagem. Nós nos olharmos olho no olho. Não é algo escrachado como acontece em várias das histórias do Deadpool, com a quebra da quarta parede; aqui temos a impressão de que tudo está realmente acontecendo (pura e simplesmente para agradar e satisfazer o leitor).

“Tudo o que vemos, ou aparentamos ver, é apenas um sonho dentro de outro sonho.” – Edgar Allan Poe.

Quem será o último inimigo que o Homem-Animal terá que enfrentar? Como será seu derradeiro confronto? Essas são perguntas que não podem ser respondidas por mim, para não perder a graça da experiência de vocês.

Eu peço, encarecidamente, que se algum de vocês possuir a curiosidade e a vontade de querer ler isso algum dia, não procurem absolutamente nada sobre a história na internet. Fique apenas com as informações contidas nessa humilde resenha que fiz, pois a rede é um lugar lotado de revelações importantes da trama. Aos que já leram, e quiserem discutir comigo nos comentários, utilizem a tag de spoilers, por favor. Sua companhia aqui foi um prazer. Até logo!

Homem-Animal #01 até #26 (Animal-Man #01 até #26 – EUA – 1988 a 1990. Vertigo, DC Comics). Roteiro: Grant Morrison. Arte: Chaz Truog, Doug Hazlewood, Tom Grummett, Steve Montano e Mark McKenna. Cores: Tatjana Wood e Helen Vesik. Letras originais: John Costanza e Janice Chiang. Capas: Brian Bolland e Wm. Kaluta.

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Sobre o Autor

Apaixonado por quadrinhos, cinema e literatura. Estudante de Matemática e autor nas horas vagas. Posso também ser considerado como um antigo explorador espacial, portador do Jipe intergaláctico que fez o Percurso de Kessel em menos de 11 parsecs — chupa, Han Solo!