O duelo de O.K. Corral é uma das histórias mais míticas do Velho Oeste americano. Ninguém sabe com absoluta certeza o que motivou o embate mortal entre os irmãos Earp (Wyatt, Morgan e Virgil) e Doc Holliday contra Tom e Frank McLaury, Billy e Ike Clanton e Billy Claiborne ocorrido em Tombstone, Arizona, em outubro de 1881. Inúmeras narrativas divergem entre si, mas o mais provável (deduzido a partir do imenso trabalho de pesquisa realizado pelos historiadores Casey Tefertiller e Jeff Morey) é que a determinação de Virgil – delegado da cidade – de que ninguém poderia andar armado (ação motivada pela suspeita de que a “gangue” dos Clanton era composta por ladrões de gado), tenha provocado o primeiro atrito sério entre o grupo, que viria a culminar com a promessa de um duelo feita por Ike contra Wyatt.

O tiroteio não ocorreu nem dentro nem perto de O.K. Corral, mas sim na rua Fremont, próxima do lugar. Os dois lados da disputa estavam a menos de dois metros de distância um do outro e aproximadamente trinta tiros foram disparados naqueles que tornaram-se os trinta segundos mais famosos da história do Velho Oeste. Quando a poeira baixou, Tom, Frank e Billy Clanton estavam mortos, Virgil, Morgan e Doc, feridos – apenas Wyatt nada sofrera. Ike entrou na justiça contra os Earp e Doc, acusando-os de assassinato, por terem supostamente atirado em Tom McLaury desarmado, história corroborada por outras testemunhas, incluindo o xerife da cidade, John Behan. Os repórteres dos dois jornais locais, e outras testemunhas, contaram uma versão distinta. Legítima defesa para um lado, assassinato para o outro. No fim, o promotor foi incapaz de enviar o caso a um júri, Virgil, Morgan, Wyatt e Doc foram exonerados de seus cargos e a história não foi encerrada: Virgil seria emboscado e morto no mesmo ano e Morgan seria assassinado no ano seguinte, sem que ninguém fosse responsabilizado por essas mortes. Wyatt resolveria fazer justiça com as próprias mãos e se vingaria, assassinando quatro cowboys pelo caminho. O xerife Behan o perseguiria, mas nunca o pegaria. Wyatt morreria em 1929 – Doc morrera de tuberculose em 1887.

Essa é a história real, crua e sem glamour. Mas não foi assim que o conflito, símbolo máximo de um período de expansão para um oeste repleto de regiões fora do alcance da justiça, entrou para a história cinematográfica, tornando-se uma das passagens mais importantes da cultura pop, retratada em livros, peças e dezenas de filmes, dentre os quais destacam-se os dois de John Sturges, os de Lawrence Kasdan e George P. Cosmatos e Paixão dos Fortes, o clássico atemporal de John Ford.

Em 1946, John Ford ainda estava a distantes 16 anos de lançar O Homem Que Matou o Facínora, um dos maiores westerns da história e que cravaria na cinematografia a expressão definidora do gênero, dita pelo jornalista Maxwell Scott (personagem interpretado por Carleton Young): Este é o Oeste, senhor. Quando a lenda antecede os fatos, publique-se a lenda. Estava longe de lançar tal sentença, mas já a executava com precisão em Paixão dos Fortes.

A premissa do tiroteio foi a base: sobre ela, o roteiro adaptado do livro de Stuart N. Lake por Sam Hellman, Samuel G. Engel e Winston Miller, fantasiou. John Ford transformou imagens e diálogos em significados, sem importar-se com os fatos. Na história real não havia nenhuma Clementine, o velho Clanton morreu antes do tiroteio, Doc Holliday era dentista, não cirurgião, e permaneceria vivo após o tiroteio; os Earp nunca foram criadores de gado, James não foi brutalmente assassinado pelos Clanton e viveria até 1926, dentre inúmeras outras inconsistências. Quando perguntado sobre as incongruências do roteiro com a história real, Ford dizia tê-la ouvido do próprio Earp, que nos últimos anos de vida, com o sucesso dos filmes sobre o Velho Oeste, tornara-se amigo do diretor.

Oh my darling, oh my darling, oh my darling Clementine

Em apenas doze minutos, John Ford estabelece as bases da história. Na vastidão empoeirada dos enormes descampados que abrem o filme, os laços de fraternidade entre os quatro irmãos Earp e o antagonismo do velho Cleaton e dos seus filhos são construídos com incrível habilidade – destaque para a extraordinária introdução dissimulada do velho Cleaton (Walter Brennan) fazendo ofertas pelo gado magro que os Earp estão movendo próximo de Tombstone, com olhares e diálogos antevendo com maestria a real intenção da família e o que viria a suceder-se entre eles no decorrer da narrativa.

Wyatt (Henry Fonda) e seus irmãos Virgil (Tim Holt), Morgan (Ward Bond) e James (Don Garner), estão de passagem por Tombstone, após deixarem Dodge City. James, o caçula, permanece fora dos limites da cidade, tomando conta do gado. Enquanto os irmãos estão na cidade barbeando-se, estoura uma confusão envolvendo um índio bêbado (“Que tipo de cidade é essa que vende álcool aos índios?“, questiona Wyatt), que Wyatt imediatamente resolve, diante da passividade dos locais, incluindo os homens da lei, recebendo a oferta prontamente negada de ser o novo xerife. Na saída da cidade, os irmãos irão descobrir que o gado foi roubado e James, assassinado. Com a certeza ainda não provada de que os Cleaton foram os culpados, eles voltam para Tombstone e Wyatt aceita o cargo de xerife.

No saloon, o caminho no decorrer do balcão esvazia-se; Doc Holliday (Victor Mature) está em uma ponta, no ponto mais distante do plano. Wyatt Earp caminha em sua direção. A câmera inverte o posicionamento e vemos Doc em primeiro plano, Earp chegando por trás dele. O extraordinário diálogo que segue-se entre as duas figuras centrais de Paixão dos Fortes é uma verdadeira aula de cinema. Admiração mútua, amizade imediata, antagonismo evidente, tensão… as ricas frases e a câmera constantemente no contracampo estabelecem em poucos instantes todos (simplesmente todos) os elementos que irão pautar a relação dos personagens de Henry Fonda e Mature durante a narrativa.

Nas palavras do crítico e escritor especializado na Era de Ouro de Hollywood, Scott Eyman, “Earp é um dos últimos homens do Oeste que Ford concebe sem um conflito de caráter“. O lendário Henry Fonda entrega uma atuação soberba como Wyatt Earp. Contido e calmo, Fonda interpreta um personagem pintado com contornos heroicos e nobres mas sem cair nos maneirismos. Emociona com a sua simplicidade e encanta. Sempre educado e cortês, mas também agressivo quando necessário, Wyatt é um homem do oeste que anda perfumado e bem vestido. Doc Holliday é uma figura que consagrou vários atores no cinema. Um personagem repleto de conflitos, auto-destrutivo e ao mesmo tempo educado e culto. Exaltado e furioso com sua tuberculose e o seu alcoolismo, é interpretado brilhantemente por Victor Mature. Doc relaciona-se com a dissimulada prostituta Chihuahua (Linda Darnell) e o aparecimento da doce e delicada Clementine Carter (Cathy Downs), sua ex-noiva, trará uma nova luz a Tombstone, incomodará Doc, despertará a inveja e o ódio em Chihuahua e fará germinar a semente do amor no coração do xerife.

A trilha sonora tem o seu papel dramático, encontrando mais espaço no começo do filme, com suas orquestrações e arranjos de canções tradicionais – Paixão dos Fortes começa e termina com os acordes da clássica canção do oeste Oh My Darling, Clementine, de 1884, também assobiada por Henry Fonda em uma manhã de domingo.

Diálogos brilhantes permeados por uma ambientação incrível, conversas e tensões entre amigos e também com os inimigos liderados pelo velho Cleaton interpretado pelo extraordinário Walter Brennan, e a vida cotidiana do Velho Oeste, com suas festas, poeira, cavalgadas, bebedeiras e missas dominicais, irão desenhar o painel que culminará com o tiroteio de O.K. Corral, que é rodado sem trilha sonora, apenas os sons naturais são escutados: o vento, os passos raspando a terra do chão árido, o som do metal das armas sendo engatilhadas, o silêncio persistente do combate iminente estabelecendo a tensão. No fim, o que menos importa em Paixão dos Fortes é precisamente o tiroteio final. Toda a história que antecede o fato é o que realmente interessa.

Monument Valley

O cenário de Tombstone foi construído no Monument Valley, fantástica região norte-americana que encontra-se na divisa entre Arizona e Utah, sob administração da semi-autônoma Nação Navajo. O Monument Valley – e suas extraordinárias e vastas paisagens – foi apresentado ao mundo através das lentes do cinema por John Ford em No Tempo das Diligências (1939), e o mítico diretor retornaria ao local para mais outros nove westerns, incluindo Paixão dos Fortes – o seu desejo em ajudar os Navajos teve papel determinante na escolha do local.

As desérticas e infinitas paragens do Monument Valley tornaram-se tão intimamente ligadas a John Ford, que vários diretores de westerns não quiseram filmar no local por acreditarem que soaria como um plágio – quando Sergio Leone rodou Era Uma Vez no Oeste, o seu diretor de fotografia, Tonino Delli Colli, conta que a cada passo que davam na região buscando as locações perfeitas para o filme, o diretor italiano comentava sem parar, extremamente entusiasmado, “olha, aqui foi aquela cena daquele filme de Ford“.

John Ford era um apaixonado pela região, que é quase um personagem próprio em seus filmes. Em Paixão dos Fortes, o diretor encontra algumas das suas composições mais belas usando o Monument Valley como moldura e pano de fundo: a derradeira conversa entre Doc Holliday e Clementine Carter, que acabara de chegar à cidade, Wyatt Earp e Clementine Carter observando o baile de inauguração da igreja e posteriormente se despedindo, Wyatt Earp visitando o túmulo do seu irmão James… inúmeras são as cenas que tornam-se ainda mais líricas com o acompanhamento do rústico cenário.

O western dos westerns

A composição visual realizada pela câmera de John Ford, que sempre busca os ângulos e posicionamentos mais belos e precisos, é realçada ao extremo pela estupenda fotografia em preto e branco de Joseph McDonald, que explora ao máximo o contraste entre o claro e o escuro, flertando com o noir em inúmeros momentos e auxiliando a construir imagens transcendentes, muitas vezes sombrias – quando Wyatt Earp encontra os Cleaton no hotel logo após a morte de James, diz que é o novo xerife da cidade e sai caminhando pelo alpendre à noite e na chuva, estamos diante de uma sequência que parece saída de um filme expressionista alemão.

Paixão dos Fortes, aliás, é uma obra repleta de cenas clássicas, dotadas de um lirismo enternecedor. John Ford, que iniciou a carreira no cinema mudo, sempre dizia que tentava transmitir as ideias visualmente – e conseguia, sempre. A icônica cena em que Henry Fonda brinca com o pé apoiado na coluna do alpendre enquanto inclina as duas pernas de trás da cadeira foi uma “nota de adorno” captada pelo olhar do diretor. Tal movimento nada mais era do que a irrequietação de Fonda no set de gravação enquanto esperava pelas filmagens, mas Ford viu naquilo o que ninguém mais teria visto e decidiu adicioná-lo ao filme. Criou um momento de poesia que serve ao personagem e tornou-se marcante na história do cinema.

Outra sequência icônica é quando Doc Holliday e Wyatt Earp encontram-se no saloon. Ao final do tenso diálogo, Doc saca a arma diante de um Wyatt desarmado, e antes que Doc possa pedir uma arma ao barman, Morgan arremessa uma pistola, que desliza pelo balcão do bar até chegar nas mãos de Wyatt. Essa cena foi homenageada em De Volta Para o Futuro III, quando Marty McFly está no saloon, e em Era Uma Vez no Oeste, quando Cheyenne desliza a arma para Harmonica. E não foi a única. Paixão dos Fortes foi reverenciado e homenageado em filmes como os Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa, Juramento de Vingança, de Sam Peckinpah, Jogada de Risco, de Paul Thomas Anderson, e Pacto de Justiça, de Kevin Costner, entre outros.

Uma fábula sobre a alma americana

O cinema de John Ford é um imenso mosaico. Todo filme seu possui uma série de elementos e subtramas que, ao espectador menos atento, parecem não ter nenhuma ligação com a história que está sendo contada, mas que constroem com perspicácia a alma do filme, estabelecendo um painel cristalino daquela região, daquele período, daquele povo. Seus filmes sempre dizem algo sobre a alma americana, sobre a alma dos americanos – e isso já foi amplamente estudado por inúmeros especialistas.

Em Paixão dos Fortes, John Ford cria inúmeros “retratos” da história dos Estados Unidos enquanto nação, em sua expansão para o oeste arredio e bravio, reconstruindo com suor e sangue a civilização em terras desconhecidas. As noites regadas a whisky, música e pôquer no saloon; o salão de barbeiro com suas loções que fazem aquele ambiente inóspito cheirar nas manhãs como “o aroma das flores do deserto” (nas palavras de Clementine); o baile dominical que comemora a construção da primeira igreja da cidade (que ainda não tem nome nem pregador) com muita música e dança (e o que seria um filme de Ford, de sangue irlandês, sem música e dança?), o palco abrindo-se para a dança tímida e elegante de Wyatt Earp e Clementine Carter, seguido de uma enorme comilança no Hotel da cidade; o genial diálogo entre Wyatt (“– Mac, alguma vez estiveste apaixonado?“) e Mac (“– Não. Fui barman a vida toda.“). Há ainda espaço para Granville Thorndyke, o ébrio trágico interpretado por Alan Mowbray. Um ator itinerante em seu solilóquio de Hamlet, de Shakespeare, para cowboys grossos e rudes, em pé sobre o balcão do saloon, música ao fundo. Quando esquece o texto, é Victor Mature, e sua persona de pistoleiro, médico e jogador inveterado, a completá-lo, olhos perdidos no horizonte, “a terra desconhecida, de cujas fronteiras nenhum viajante volta“, fumaça dos cigarros subindo ao redor do seu rosto, em close-up na cena, enquanto a expressão de Henry Fonda ao observá-lo é meditativa.

Esse é o Velho Oeste de John Ford. Onde pistoleiros recitam Shakespeare no bar e a cidade para no domingo para celebrar a construção da igreja. Situações aparentemente incomuns para quem esquece-se de que aquele período existiu verdadeiramente, mas críveis, reais. O Velho Oeste era isso: civilização se estabelecendo em uma nova região. Drama, humor, romance, amizade, violência, lazer, religião, festa, música, comida… todos os elementos da vida real de um povo.

Quem for assistir Paixão dos Fortes esperando um western arrojado, intenso e repleto de ação irá se decepcionar. Paixão dos Fortes é um western calmo, poético – lacônico, por assim dizer –, um clássico não somente do gênero, mas do cinema em geral. A contemplação é o seu coração. John Ford dominava a linguagem cinematográfica como poucos e tinha um estilo visual único, que tantos tentaram imitar e não conseguiram. Um olhar capaz de enxergar tomadas e planos que nenhum outro olhar perceberia, e que compreende profundamente a beleza. Seja no Velho Oeste, na Segunda Guerra Mundial ou nos Estados Unidos da década de 1930, Ford não filmava uma época, sujeita à datação do tempo, este senhor implacável, mas sim uma comunidade, suas histórias, seus dramas e suas alegrias. Não é à toa que os seus filmes permanecem imunes à passagem do tempo: são eternos, porque capturam pequenos retratos de vidas que hoje, no Velho Oeste, ou séculos no passado, em qualquer lugar do mundo, são exatamente iguais. Seu cinema é ordinário e simples, e por isso mesmo é tão grandioso. Ninguém resumiu melhor o tamanho e o alcance que Ford e sua arte representam como Martin Scorsese: “Ele é a essência do cinema clássico americano. E qualquer pessoa séria que faz cinema hoje em dia, saiba ela ou não, foi afetada por Ford.”

Paixão dos Fortes (My Darling Clementine) – EUA, 1946, cor, 97 minutos.
Direção: John Ford. Roteiro: Stuart N. Lake, Sam Hellman, Samuel G. Engel, Winston Miller. Música: Alfred Newman, Cyril Mockridge, David Buttolph. Cinematografia: Joseph MacDonald. Elenco: Henry Fonda, Victor Mature, Linda Darnell, Cathy Downs, Walter Brennan, Ward Bond, Tim Holt, Alan Mowbray, Roy Roberts.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.