A origem da palavra linchamento parece estar diretamente ligada a dois homens de sobrenomes iguais que viveram no mesmo período de tempo no estado da Virgínia, Estados Unidos da América. O coronel Charles Lynch (1736-1796) praticou julgamentos sumários de inúmeros suspeitos de subversão durante a Revolução Americana. Suas ações extralegais foram legitimadas pela Assembleia Geral de Virgínia em 1782. O capitão William Lynch (1742-1820) liderou um bando de justiceiros que capturava, julgava e enforcava bandidos ao arrepio da lei, por volta de 1780. A punição organizada – mas não autorizada – de criminosos passou a ser conhecida popularmente como “a lei de Lynch“, dando origem à palavra linchamento por volta de 1837, quando o ódio racial contra índios e negros cresceu substancialmente na América e nasceram os famigerados “comitês de vigilância“, que dariam origem a grupos como a Ku Klux Klan.

Se o termo linguístico específico para designá-la apareceu tão somente no século XIX, a infame prática do linchamento infelizmente é comum na história da humanidade desde a Antiguidade (nas escrituras temos uma referência ao apedrejamento da mulher adúltera, que é evitado por Jesus), executada por todos os povos, em todos os séculos, até os dias atuais. Quando há frouxidão das leis e das regras de convivência que constituem a civilização como a conhecemos ou situações de tensão social extremadas, o “justiçamento popular” torna-se prática corriqueira.

O incidente em Ox-Bow

Estabelecendo um retrato contundente sobre um caso de linchamento ocorrido no Velho Oeste, The Ox-Bow Incident (1940) foi o romance de estreia do escritor norte-americano Walter Van Tilburg Clark. Seu enredo logo chamou a atenção do notável diretor William A. Wellman, vencedor do prêmio de Melhor Filme por Asas (1927) na primeira edição do Oscar, e famoso pelos filmes centrados na aviação – a sua grande paixão –, que convenceu Darryl F. Zanuck, lendário executivo da Twentieth Century-Fox, a abraçar o projeto. A produção e o roteiro ficaram nas mãos de Lamar Trotti e o elenco estelar foi recheado com grandes nomes do cinema norte-americano, como Henry Fonda, Anthony Quinn, Dana Andrews, Harry Morgan e Jane Darwell.

A história tem lugar em 1885, no estado de Nevada. Art Croft (Harry Morgan) e Gil Carter (Henry Fonda) são dois andarilhos que param na monótona cidade de Bridger’s Wells e encontram uma atmosfera de tensão consumindo o lugar. Os moradores estão furiosos por causa dos recentes roubos de gado, desconfiando de tudo e de todos – inclusive da dupla, ainda que eles sejam conhecidos no local. Quando um homem irrompe no saloon anunciando o assassinato do fazendeiro Larry Kinkaid, os habitantes entram em polvorosa. Aproveitando-se da ausência do xerife (Willard Robertson) e da comoção popular em torno do caso, o Major Tetley (Frank Conroy) lidera um grupo de justiceiros para perseguir e punir os criminosos, que teriam sido avistados por Poncho (Chris-Pin Martin) nas proximidades da região. Os protestos de Davies (Harry Davenport) contra a atitude precipitada são inúteis e o grupo parte em desabalada carreira para fazer justiça com as próprias mãos, encontrando três suspeitos durante a madrugada no cânion de Ox-Bow, uma cidade vizinha: o jovem e bem-articulado Donald Martin (Dana Andrews), o mexicano Juan Martínez (Anthony Quinn) e o velho com problemas mentais Alva Hardwicke (Francis Ford, irmão do diretor John Ford). Martin tem a posse do gado de Kinkaid, mas é incapaz de provar a sua compra por não possuir um contrato de venda, e a turba vingativa, certa de haver encontrado os criminosos, resolve enforcá-los ao alvorecer.

Consciências Mortas é um dos filmes que melhor capturou (com altas doses de realismo, afastando-se completamente do edulcoramento ficcional tradicional) uma das principais características arquetípicas do western: a terra afastada e inóspita onde a força da lei não se faz presente na velocidade necessária, permitindo que toda a sorte de injustiças encontre o seu lugar. É o Velho Oeste enquanto metáfora do nascimento da civilização em paragens isoladas coexistindo com a face da barbárie que se manifesta com mais proeminência quando os pilares da convivência social ainda não encontram-se devidamente assentados.

Chagas dolorosas e más consciências

Um dos precursores do western psicológico, Consciências Mortas antecipa em nove anos o que Matar ou Morrer (1952) de Fred Zinnemann provocaria com mais impacto no gênero. No auge dos westerns clássicos da década de 1940, período da divulgação do mito do Velho Oeste, com seus heróis fortes e virtuosos em empreitadas épicas e batalhas lendárias, a obra de William A. Wellman subverte as expectativas, foge dos parâmetros estabelecidos e reveste-se de aspectos de outro gênero, o noir, especialmente nas várias camadas narrativas, múltiplas versões das mesmas histórias (e nunca sabemos com exatidão quem está dizendo a verdade) e no mistério sobre o assassinato (nunca mostrado) de Kinkaid, que permanece até os instantes finais, para reexaminar o western com um olhar pessimista lançado sobre chagas dolorosas e más consciências – a tradução do título The Ox-Bow Incident para o português como Consciências Mortas não poderia ser mais acertada.

Não existem heróis em Consciências Mortas. Não há ação, espetáculo, tiroteio ou grandiloquência – a reflexão sobrepõe tais elementos. A direção, a fotografia e a montagem são sóbrias: há pouca variedade de cenários, o ritmo é formal e enxuto – a duração do longa-metragem é de parcos 75 minutos. Mas não é menos genial por causa disso, já que a sobriedade serve à história. William A. Wellman realiza enquadramentos absolutamente geniais com sua câmera sutil, que se permite até mesmo um traveling estupendo no homem que traz a notícia da morte de Kinkaid. A leitura que Henry Fonda faz da carta de Martin no saloon é um primor: o chapéu do seu parceiro escondendo seus olhos enquanto vemos seus lábios proferirem as poderosas últimas palavras de um condenado, dizeres que acertam fundo a consciência de todos os presentes que anuíram com a barbárie. A confissão de Anthony Quinn a Poncho é profundamente expressionista, com os primeiros raios de sol atravessando o ambiente do cânion, o personagem de Quinn esperando que o compatriota remeta a um sacerdote a descrição dos seus pecados para que possa receber a absolvição na vida eterna. E o enforcamento não é mostrado diretamente: vemos os cavalos serem chicoteados, mas não enxergamos o desespero dos três mortos debatendo-se nas cordas: as suas sombras rígidas sibilam na terra, encontrando os joelhos no chão do pastor Farnley (Marc Lawrence), que canta e reza por suas almas enquanto o raiar do dia preenche de claridade o ambiente.

Aos três acusados não é dada nenhuma chance de defesa. São poucas as vozes entre o grupo que se opõem ao linchamento. O personagem de Henry Fonda é uma delas, mas ele não é um herói. Seu grito é surdo, sua voz é fraca, sua contrariedade é tênue – sabe que o ódio da turba ensandecida pode voltar-se também contra ele. Apenas sete pessoas ficam contra o enforcamento, entre elas Art, Carter, Davies, Poncho, Farnley e Gerald (William Eythe) o filho covarde do major Tetley. São todos votos vencidos. Os espectros dos três mortos ampliam-se com o nascer do sol e a chegada do xerife revela que os verdadeiros criminosos foram capturados em outro lugar e que Kinkaid não havia sido assassinado.

O legado de Consciências Mortas

William A. Wellman estrutura o filme em um ciclo; a composição inicial repete-se ao final com significados e pesos opostos: os dois homens que chegam a uma cidade que conhecem bem são os mesmos que partem pelo mesmo caminho, enquanto um cachorro cruza a estrada nas duas sequências. Ainda que a duração da película seja curta, o roteiro e a direção conseguem encontrar espaço nas entrelinhas para desenvolver – muitíssimo bem – a complexa relação entre o abusivo e controlador major Tetley com o seu fraco e sensível filho Gerald, além do romance inconcluso de Carter com Rose (Mary Beth Hughes), cuja diligência onde viaja com o novo esposo é equivocadamente atacada pelo grupo em um desfiladeiro no cânion de Ox-Bow.

Consciências Mortas foi indicado ao Oscar de Melhor Filme em 1944 (sendo o último representante de um seleto grupo de filmes indicados apenas na categoria principal da premiação), perdendo para Casablanca. Em 1998, foi selecionado pela Biblioteca do Congresso dos EUA para preservação no National Film Registry para filmes que são “culturalmente, historicamente ou esteticamente significantes”. O grande western da carreira de William A. Wellman é também um dos filmes prediletos de outra lenda do cinema: Clint Eastwood.

Ainda que Sergio Leone e Don Siegel sejam os seus mentores e mestres no ofício da sétima arte, e a John Ford ele sempre se aproxime para reverenciar e homenagear, é em Consciências Mortas que encontramos aquela que talvez seja a influência mais notória no ethos cinematográfico de Clint Eastwood, significativamente nos quatro westerns que dirigiu – O Estranho sem Nome (1973), Josey Wales — O Fora da Lei (1976), O Cavaleiro Solitário (1985) e Os Imperdoáveis (1992) – e em Sobre Meninos e Lobos (2003). Influência constantemente citada em entrevistas e plenamente assimilada pelo mítico diretor, que rotineiramente se debruça sobre os temas estruturais de Consciências Mortas, adaptando-os ao seu estilo característico: o senso errôneo do que é a verdadeira justiça, a apatia das pessoas diante de atos inomináveis de seus pares e a força da lei ainda incipiente e que não consegue se fazer presente na velocidade necessária em todos os lugares.

Consciências Mortas é um filme rústico e sóbrio, repleto de nuances narrativas e estéticas e embebido em diálogos primorosos. A densidade da sua leitura social é ampliada pela caracterização extremamente crível dos seus personagens – devidamente envernizada pelas ótimas atuações do espetacular elenco. O filme lança um olhar penetrante, sombrio e pessimista sobre a alma daquelas pessoas tão variadas de uma cidade como todas as outras do Velho Oeste, cada uma com seus motivos particulares em uma expedição revoltosa e histérica em busca daquilo que denominam “justiça” – e o apelo à razão daquela turba é impossível: estão todos impregnados e cegos pela sede de violência, arvorando-se juízes, júris e executores dos suspeitos capturados.

Da absurda injustiça que se abate sobre os três homens inocentes, o legado que permanece é o da magnífica carta escrita por Donald Martin para a sua esposa. O seu conteúdo não é revelado no livro de Walter Van Tilburg Clark, mas William A. Wellman considerou que torná-lo explícito no filme era algo extremamente importante – e coube ao roteirista Lamar Trotti escrever a sua mensagem com maestria. Ao final de Consciências Mortas são os personagens de Henry Fonda e Harry Morgan que somem no horizonte em busca da esposa de Martin para entregar-lhe a carta. A missiva é pungente em todos os sentidos, um soco no estômago em seu alcance e um ensaio profundo sobre a justiça, as leis e a consciência coletiva. Um testamento para o futuro, uma herança incompreensível para as consciências mortas daquele povo retratado na obra e – infelizmente – ainda igualmente incompreensível para muitas pessoas no mundo real dos dias atuais.

“Minha esposa querida.

O Sr. Davies vai te contar o que aconteceu aqui. Ele é um bom homem e fez tudo o que pôde por mim. Havia outros homens bons, só que não perceberam o que estavam fazendo. É por eles que sinto pena, porque quando isso acabar eles se lembrarão pelo resto da vida.

Um homem não pode pegar a justiça em suas mãos e enforcar pessoas sem ferir a todos, porque eles não estarão violando só uma lei, mas todas as leis. A lei é muito mais do que palavras escritas em um livro, ou juízes, advogados e xerifes que você contrata para aplicá-la. É tudo o que aprendemos sobre justiça, sobre certo e errado. É a verdadeira consciência do que é humanidade.

Não há civilização se não houver consciência, porque se as pessoas tocam a Deus, como fazê-lo senão através de sua consciência? E o que seria a consciência de alguém, senão um pouco da consciência de todos os homens que já viveram? Acho que é tudo o que tenho para dizer, além, é claro, de mandar beijos para as crianças e pedir que Deus as abençoe.

Seu marido, Donald.”

Consciências Mortas (The Ox-Bow Incident) – EUA, 1943, p&b, 75 minutos.
Direção: William A. Wellman. Roteiro: Lamar Trotti, baseado em The Ox-Bow Incident de Walter Van Tilburg Clark. Música: Cyril J. Mockridge. Cinematografia: Arthur C. Miller.
Edição: Allen McNeil. Elenco: Henry Fonda, Dana Andrews, Mary Beth Hughes, Anthony Quinn, William Eythe, Frank Conroy, Harry Morgan, Harry Davenport, Jane Darwell, Matt Briggs, Marc Lawrence, Paul Hurst, Francis Ford.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.